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O avanço conservador contra a autonomia e pluralidade indígena no Brasil

Ana Carolina Alfinito y Salvador Schavelzon :: 11.10.21

A situação dos povos indígenas no Brasil se encontra atravessada pela urgência. As armas que sustentaram os golpes do desenvolvimento” brasileiro contra os povos indígenas nas últimas décadas - incluindo as normas, as fraudes, e a violência nua - hoje estão ainda mais articuladas e explícitas, e se apresentam como projeto político de destruição do marco normativo de proteção estatal dos índios. Diante da guerra declarada, o movimento indígena promove um processo incessante de reflexão, (re)organização e resistência.

 

 

O avanço conservador
contra a autonomia e
pluralidade indígena no
Brasil
Ana Carolina Alfinito*
Salvador Schavelzon**

Grupo de Trabajo CLACSO Pueblos indígenas autonomías y derechos colectivos
Boletín Autonomías hoy. Pueblos indígenas en América Latina
Año 1 – Número #3
Octubre 2021

 

Introdução
A situação dos povos indígenas no Brasil se encontra atravessada pela
urgência. As armas que sustentaram os golpes do “desenvolvimento”
brasileiro contra os povos indígenas nas últimas décadas - incluindo as
normas, as fraudes, e a violência nua - hoje estão ainda mais articula-
das e explícitas, e se apresentam como projeto político de destruição
do marco normativo de proteção estatal dos índios. Diante da guerra
declarada, o movimento indígena promove um processo incessante de
reflexão, (re)organização e resistência. As mobilizações indígenas que
* Advogada e doutora em sociologia pelo Instituto Max Planck para o Estudo de Sociedades (MPIfG). É
uma das coordenadoras do Observatório de Povos Indígenas e Sistema de Justiça Criminal da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib). Investigadora del Grupo de Trabajo CLACSO Pueblos indígenas, autonomías y
derechos colectivos.
** Antropólogo, professor e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo. Investigador del Grupo de
Trabajo CLACSO Pueblos indígenas, autonomías y derechos colectivos.

28 O avanço conservador contra a autonomia e pluralidade indígena no Brasil AnA CARoLInA ALFInIto y SALVADoR SCHAVELZon
tomaram Brasília e diversos territórios em meados de 2021 oferecem ele-
mentos a partir dos quais podemos pensar nas formas e horizontes da
luta indígena na atual conjuntura política.
A luta dos povos indígenas no Brasil transcorre em meio a uma crise do
projeto de pluralidade étnica e cultural nascido nas décadas de 1970 e
1980. Esse projeto, baseado na autodeterminação, na territorialidade e
na diferença cultural profunda, continua vivo entre os povos indígenas,
na sua capacidade de mobilização, na sua organização política e terri-
torial. Mas os poderes da república e setores extrativistas o atacam por
todos os lados. O assédio sobre as terras indígenas e a desestruturação
das formas de vida comunitária deve ser analisada numa perspectiva
ampla, que vai além das ofensivas do agronegócio e a gestão de governo
explicitamente anti-indígena. A continuidade da situação atual com o
processo histórico de conquista e colonização exige entender as dificul-
dades de existência de modos de vida indígenas em várias frentes e em
profundidade.
O presente texto explora algumas das ambiguidades e limitações do
marco institucional brasileiro de organização da pluralidade cultural e
étnica, ou seja, da forma como as instituições capturaram e codifica-
ram a energia transformadora do movimento indígena e indigenista do
período da redemocratização. Aborda alguns dos dispositivos usados
durante a última década por setores anti-indígenas para cercear o ho-
rizonte mais radical desse marco, dentre eles a chamada tese do marco
temporal, hoje no centro dos enfrentamentos entre povos indígenas e o
ruralismo. Por fim, tece considerações sobre a ação política indígena e
seus horizontes em meio às ruínas do indigenismo de estado.
Autonomia e reação: Limites do pluralismo à brasileira
A Constituição Federal de 1988 não chegou a instituir a plurinaciona-
lidade como eixo organizador do campo interétnico, como fizeram as
do Equador e da Bolívia, em 2008 e 2009, e como hoje é discutido na
Convenção Constitucional do Chile. Em termos do reconhecimento da

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autonomia política indígena, a Constituição brasileira é bastante tímida,
embora represente um avanço em relação ao regime anterior de tutela
e assimilação.
Na década de 1970, nas Assembleias Indígenas organizadas ao redor do
Brasil e em outros encontros clandestinos, o campo emergente do in-
digenismo e do movimento indígena elaborou um projeto político de
autodeterminação e autonomia indígena. Esse projeto foi levado à As-
sembleia Constituinte de 1987-88, onde a plurinacionalidade foi propos-
ta por organizações como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e
a Associação Nacional de Ação Indígena (Anaí), que entenderam que
havia espaço político para um projeto mais radical de transformação do
estado (Lacerda, 2008). A reação foi imediata. Dias antes do protocolo
do projeto de plurinacionalidade, o jornal O Estado de São Paulo publi-
cou matéria acusando o CIMI de envolvimento numa conspiração com
mineradoras internacionais para se apropriar dos minérios dentro das
terras indígenas (Estado de São Paulo, 1987). Abriu-se uma Comissão
Parlamentar de Inquérito para investigar as acusações (Brasil, 1987) e,
no meio tempo, a proposta de estado plurinacional foi arquivada.
No fim, o capítulo da Constituição que trata dos povos indígenas é um
amálgama de continuidade e ruptura institucional. Dentre suas ino-
vações mais importantes estão o reconhecimento da capacidade jurídi-
ca indígena e uma ampliação dos seus direitos territoriais (Cunha, 2018;
Eloy, 2020). O art. 231 estabelece que os povos indígenas têm direito às
suas terras tradicionalmente ocupadas, definidas como “
as habitadas
[pelos indígenas] em caráter permanente, as utilizadas para suas ati-
vidades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos am-
bientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
A linguagem da Constituição brasileira certamente não é a dos indíge-
nas. A fórmula “usos, costumes, tradições” reproduz as formas usadas
pela sociedade colonial para codificar civilizações diferentes (Yrigoyen
1999). Intelectuais indígenas explicam como a forma de vida e de relação
entre os povos e a natureza não se reduz à ideia de “recurso ambiental”,

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e podemos questionar até que ponto cabe falar em atividades produtivas
e em bem-estar. O próprio conceito de Terra Indígena (TI) codificado na
Constituição traz a ideia de espaços fixos com contornos rígidos, que
desfigura e reduz a multiplicidade de formas de habitar, de fazer mundo
e território encontradas nas tradições ameríndias.
Apesar das ambivalências e colonialidade do marco institucional, a de-
marcação de TIs tem sido central no fortalecimento da autodetermi-
nação dos povos originários. Ao mesmo tempo em que a demarcação
constitui a territorialidade indígena sob o signo da lei do estado e a par-
tir de limites impostos por negociações com a sociedade envolvente, ela
estabiliza fronteiras jurídicas, simbólicas e físicas que ajudam a conter o
avanço do extrativismo sobre esses espaços e que criam zonas de possi-
bilidade de formas outras de fazer território.
A demarcação de terras indígenas avançou principalmente nos anos
1990 e início dos 2000 e com forte apoio internacional para a proteção
ambiental na Amazônia. Mas o ímpeto demarcatório perdeu tração a
partir da segunda metade dos anos 2000 na mesma medida em que,
progressivamente, setores econômicos nascidos da expropriação de te-
rras indígenas e públicas se voltaram estrategicamente para a conquista
de influência política. Junto com o avanço do ruralismo no Congresso
Nacional e no governo1, uma ideologia anti-indígena criava as condições
de uma expansão extrativista que bloqueava progressivamente o acesso
dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais2. O esforço do mo-
vimento político ruralista para dificultar, impedir e anular a demarcação
de terras indígenas ao redor do país se reflete na desaceleração progres-
siva da demarcação de terras indígenas a partir de 2010.
1 Por ruralismo, entendemos o movimento político institucional e extra-institucional do patronato rural no
Brasil, com posto principalmente por proprietários e empresários rurais (Bruno, 2017).
2 A partir do início dos anos 2010, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), instância de organização
suprapartidária do ruralismo no Congresso Nacional, elegeu os direitos territoriais dos povos indígenas e
tradicionais como seu principal alvo (Bruno, 2017). Em 2013, a FPA estabeleceu como uma de suas prioridades
“a regulamentação da questão de terras indígenas e áreas quilombolas, a fim de garantir segurança jurídica à
competitividade do setor agropecuário”. Disponível em: https://fpagropecuaria.org.br/historia-da-fpa/.

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A demarcação travou antes que o estado respondesse às demandas por
demarcação fora da Amazônia, em regiões de colonização mais antiga,
onde o reconhecimento de TIs implicaria a retirada de terras dos circui-
tos de produção e acumulação capitalista onde já estavam integradas.
O reconhecimento dos direitos territoriais indígenas jamais chegou aos
povos não-amazônicos3. Não que não tenham florescido também nes-
sas regiões, à sombra do não-reconhecimento do estado, experiências
de auto-organização, de autonomia, de ressurgimento étnico e de re-
tomada4. Mas é crucial reconhecer que no sul, sudeste, centro-oeste e
nordeste do Brasil, o direito indígena ao território jamais foi efetivado
pelo estado. E mesmo na Amazônia ainda restam dezenas de TIs serem
demarcadas, e as terras já reconhecidas sofrem ataques cada vez mais
intensos5.
A demanda internacional por commodities, a relativa facilidade com que
o setor empresarial e grileiro se apropria de terras no Brasil, gerando
números alarmantes que colocam o país no topo da lista de morte de
ativistas em conflito fundiário6, também a articulação das forças invaso-
ras que ameaçam o território com o poder político local e nacional, tem
feito que uma disputa “de fronteira” se constitua em política e norma de
fato, para além dos direitos constitucionalizados. Não por casualidade,
o Bolsonarismo acolhe como componente político os setores anti-indí-
genas mais explícitos, colocando em cargos ministeriais, por exemplo,
participantes de investidas contra as instituições indigenistas e órgãos
públicos de política agrária e indígena, nas ações do congresso na última
década.
3 Ainda hoje, cerca de 98% da extensão de TIs demarcadas encontra-se na Amazônia Legal.
4 Dentre os muitos estudos sobre processos de etnogênese e retomada indígena, ver: Oliveira (1999); Benites
(2014); e Alarcon (2019).
5 Hoje no Brasil mais de 220 terras indígenas aguardam demarcação. Ver: https://www.socioambiental.org/
sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/nota_tecnica_monitoramento.pdf
6 Brito, J “Brasil é o 3º em mortes de ativistas ambientais e dos direitos humanos, diz ONG” CNN Brasil, 28/7/2020
Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-e-o-3-em-mortes-de-ativistas-ambientais-e-dos-
direitos-humanos-diz-ong/

32 O avanço conservador contra a autonomia e pluralidade indígena no Brasil AnA CARoLInA ALFInIto y SALVADoR SCHAVELZon
o marco temporal e outras trapaças: o estado contra
as sociedades indígenas
As territorialidades indígenas marcam formas profundamente outras
e diversas de organizar a relação entre humanos e não-humanos e de
estruturar as práticas que sustentam a vida. Apesar das limitações do
conceito de terra indígena codificado na Constituição, tais terras são
espaços que abrigam essas territorialidades e mundos e constituem obs-
táculos à penetração das formas capitalistas de exploração econômica,
privatização da terra e acumulação. Não é à toa que o ruralismo e outros
setores extrativos tenham dedicado tanta energia para avançar formas
de abrir, flexibilizar, ou dissolver as fronteiras que as protegem.
A demarcação e proteção de TIs pelo estado depende em grande parte
da Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável pela política terri-
torial indígena no Brasil. Mas a Funai foi entregue ao ruralismo (não é
a primeira vez) e tem promovido incessantes ataques aos direitos indí-
genas, por exemplo ao regularizar a grilagem dentro de TIs e permitir a
exploração econômica por não-indígenas em seu interior (Brasil, 2020).
Todos os processos de demarcação estão hoje paralisados, sem provi-
dências e sem perspectivas de avanço.
Nos discursos de autoridades públicas, intensificam-se as referências à
imagem de um índio produtor que pretensamente quer se libertar das
amarras do atraso e se desenvolver por meio da produção econômica,
e principalmente do arrendamento de terras e do garimpo. A proteção
das terras indígenas é retratada como estorvo e entrave ao desenvolvi-
mento. A ideia de que “o indígena precisa se desenvolver” é tão antiga
quanto o indigenismo de estado, e aponta para o assimilacionismo e
etnocídio que estão dentre seus operadores fundamentais7.
7 Para citar um exemplo entre muitos, em 2018 o presidente eleito Bolsonaro chegou a afirmar que “manter
índios em reservas é como manter animais em zoológicos (…) nós não podemos usar a situação desses índios, ainda
inferior à nossa, como justificativa para a demarcação de terras gigantescas”. https://g1.globo.com/sp/vale-do-
pacos-diz-bolsonaro.ghtmlraiba-regiao/noticia/2018/11/30/indios-em-reservas-sao-como-animais-em-zoologi

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Ela foi e é combatida pelo movimento indígena, mas frequentemente
vem à tona em discursos e projetos normativos. O Projeto de Lei (PL)
191 de 2020, que abre as terras indígenas para a mineração, elenca den-
tre as suas justificativas a geração de emprego e renda (inclusive para
indígenas), a possibilidade de pagamento de compensações aos povos
afetados. O PL 490/07 e projetos apensados seguem essa mesma lógica,
abrindo uma série de brechas para a exploração econômica, inclusive
por não indígenas, dentro das TIs.
Hoje, a chamada tese do marco temporal está no centro do complexo
de discursos, normas e práticas mobilizadas para atacar a autodetermi-
nação e os direitos territoriais indígenas. O marco temporal é uma inter-
pretação radicalmente restritiva da Constituição, criada e avançada pelo
ruralismo. Estabelece que os direitos territoriais indígenas são aplicá-
veis apenas àquelas terras efetivamente ocupadas por povos indígenas
na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. E a
terra não apenas tinha que estar ocupada nessa data, depois de cinco
séculos de colonização esbulho, mas a ocupação tinha que ser dotada de
caráter “tradicional” no sentido antropológico, ou seja, se dar de acordo
com os usos e costumes daquele povo, que o distinguem da sociedade
envolvente8.
O objetivo dessa tese é impedir a demarcação de terras indígenas, e prin-
cipalmente nas regiões de fronteira antiga, onde essas terras já haviam
sido esbulhadas e convertidas em propriedade privada em data anterior
a 1988. É o caso, por exemplo, dos Guarani e Kaiowá de Mato Grosso
do Sul, removidos de seus tekoha pelo avanço das frentes agropastoris
principalmente a partir dos anos 1960 (Benites, 2014). Não há dúvida
que as terras hoje ocupadas por usinas e plantações de soja são terras
tradicionais no sentido de fazerem parte do território vital de um povo.
Evidências arqueológicas, históricas e antropológicas abundam. Mas
com o marco temporal, nada disso importará. A história de ilegalidade e
8 A tese do marco temporal admite a exceção do chamado esbulho renitente, segundo o qual se o povo
indígena conseguir provar que à data da promulgação da Constituição havia uma disputa física ou jurídica pela
posse da terra, o marco não se aplica. Extremamente difícil de comprovar, tal exceção não tem produzido efeitos.

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violência será apagada e, numa canetada, o roubo das terras indígenas
será anistiado.
O marco temporal não é novo - ele circula pelos três poderes e produz
efeitos há ao menos uma década. Em 2012, numa tentativa de parali-
sar as demarcações, a Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU)
transformou o marco temporal em norma vinculante para a adminis-
tração pública federal, logo antes da então ministra Gleisi Hoffmann
participar de uma série de audiências anunciando a paralisação das de-
marcações de terras9. O Poder Judiciário tem aceitado esse dispositivo
como justificativa para suspender ou anular processos de demarcação
de terras indígenas desde o julgamento da Petição 3.388, referente à
demarcação de Raposa Serra do Sol, em 200910. No âmbito do legislativo,
o marco temporal, juntamente com outros dispositivos restritivos dos
direitos territoriais indígenas, foi incluído em projetos de lei como o PL
490/2007, aprovado em junho pela Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ) da Câmara e aguardando deliberação do plenário.
Entre junho e setembro de 2021, a análise da constitucionalidade do
marco temporal foi colocada na pauta da Câmara dos Deputados e do
Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Caso Xokleng, que
terá efeitos vinculantes para todos os casos semelhantes11. A verdade é
que não foi necessário aguardar o sancionamento do marco temporal
pela suprema corte para suspender o reconhecimento dos direitos terri-
toriais e culturais indígenas. Mas foi nessa conjuntura que a maior mo-
bilização já realizada no Brasil, com 7 mil indígenas acampados de 170
etnias, em agosto, e outros povos antes e depois, em sucessivas jorna-
das de protesto, mobilização e visibilização do conflito indígena, deixou
9 A Portaria 303/2012 foi suspensa, mas seus termos voltaram no governo Temer, na forma do Parecer
001/2017, também da AGU, igualmente suspenso pelo STF.
10 Para uma análise dos impactos de longo prazo da tese do marco temporal sobre os direitos territoriais do
povo Terena, ver Alfinito Vieira e Eloy Amado (2017).
11 Sobre o caso Xokleng, ver: https://apiboficial.org/2021/06/29/entenda-porque-o-caso-de-repercussao-
geral-no-stf-pode-definir-o-futuro-das-terras-indigenas/.

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registro da força e realidade do caráter multiétnico que está presente no
atual Brasil.
organização política e imaginação institucional no
movimento indígena Brasileiro
Juntas, as normas, políticas, discursos e práticas mencionadas acima
formam um dispositivo que busca controlar as demandas indígenas fun-
dadas na territorialidade e na diferença.. Elas revelam que o projeto do
indigenismo do estado é a guerra contra a autodeterminação indígena,
e estabelecem o campo dentro do qual a luta indígena hoje se trava no
Brasil. A questão que surge é: quais são as práticas, os projetos e ho-
rizontes que surgem na luta indígena nesse contexto de ataque? Para
onde aponta a ação política, formas organizacionais e imaginários do
movimento indígena hoje?
O avanço do capitalismo sobre os territórios tem várias frentes: a anu-
lação do processo de demarcação, que já corre na prática; a invasão dos
territórios já demarcados, adaptando a legislação para poder pôr a terra,
os rios e o subsolo dos indígenas à disposição do capitalismo, transfor-
mando tudo em mercadoria; o engajamento das comunidades indíge-
nas neste processo, criando atores econômicos individuais ou coletivos
dependentes das políticas do estado e do mercado. Um avanço “civili-
zatório” acompanha a expansão capitalista no etnocídio e negação da
possibilidade de formas de vida alternativas.
A destruição é a continuidade de um processo de conquista e pacifi-
cação civilizatória que nunca acaba, porque é empurrado pela própria
lógica de um capitalismo que só subsiste na expansão das suas frontei-
ras, de forma extensiva e intensiva, territorial e ideológica, com gado,
desmatamento e roubo de madeira, na legislação do Estado, de dentro
das comunidades indígenas e interligado com cadeias internacionais e
demanda de matéria prima. Nas retroescavadeiras ou na violência para-
militar a destruição encontra, sempre, resistência.

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Nos perguntamos pelos modos de existência que resistem à essa reali-
dade. Projetos coletivos do movimento indígena e não só… elaborações
utópicas ou de demandas específicas e formam parte de experiências
territoriais, em TIs Demarcadas ou não, na reinvenção de formas an-
cestrais de organização ou em nos movimentos de territorialização sem
território, no éxodo ou o deslocamento, desenvolvendo formas de au-
tonomias, respostas cosmopolíticas, de uma política que não é apenas
humana, em movimentos abertos a concepções e ontologias distintas a
respeito do que chamamos de natureza e sociedade, ao mundo huma-
no e sua relação com o não humano, de formas não necessariamente
econômicas, utilitárias, proprietárias.
Os debates contemporâneos na antropologia e outros campos do saber
(Schavelzon 2016) se encontram pensando nas diferenças intensivas em
territórios e mundos, no questionamento de epistemologias empobre-
cedoras da experiência, nas codificações do mercado, do Estado, das
grandes religiões. A pergunta é pela luta indígena que por dentro das
instituições, no território e em alianças com outros setores do país en-
frentam o projeto de destruição de territórios ainda não desmatados,
não loteados e não inseridos na lógica mercantil de integração produ-
tiva, de crescimento económico e de “harmonia em toda parte”, como
Pierre Clastres escrevia a respeito das ameaças contra o povo Yanomami
em “O Último Círculo” (2004).
Em tempos de destruição, ameaça e avanço anti-indígena nas insti-
tuições, não é possível se contentar com a adaptação de um discurso
ecologista, empresarial responsável, de novo acordo verde entre setores
políticos e na política do engano e manipulação das empresas minera-
doras e o estado em processos de consulta, compensação e relação com
as comunidades. No Acampamento Luta pela Vida em Brasília, nas mo-
bilizações nos territórios e nas experiências de autodefesa e autodemar-
cação, encontramos territorialidades constituídas por vínculos recípro-
cos e vitais; vemos persistência e invenção indígena como resistência.
No debate do marco temporal, o movimento indígena defendeu dire-
itos constitucionalizados, mas também um horizonte para onde uma

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legislação e sistema institucional menos colonial poderia se dirigir. Os
indígenas e seus aliados na luta contra o ruralismo apresentaram uma
territorialidade que não é constituída como um espaço fixo e nem por
uma ligação estreita com o passado. A TI emerge no presente, nestas
construções que se encontram em curso, pela construção de uma ma-
neira de ser, se relacionar e habitar o mundo. É emergente e não está
dada em nenhum marco temporal ou geográfico. Nesse sentido, o
próprio acampamento em Brasília formou um território indígena que
atravessou o espaço, e a luta no bloqueio de estradas nacionais também
mostrou uma existência ubíqua que pode ser reproduzida e reinventada
continuamente. O que fazem no dia a dia os processos de construção de
uma territorialidade autônoma, onde a guerra contra setores que pro-
põem um desenvolvimento predatório permite se estabelecer e circular
com outra lógica, indígena.
A luta dos povos indígenas do Brasil se aproxima a de povos em toda
Abya Yala, onde a defesa da água, a luta contra o extrativismo e a defesa
do território permitem a construção modos de existência, na região co-
lombiana do Cauca, em Chiapas, na Araucania e em tantos lugares onde
povos ameríndios enfrentam ameaças similares. A luta e mobilização in-
dígena na Bolívia encontrou ferramentas jurídicas na defesa de políticas
de terra favoráveis à comunidade, na Ley de Reconducción de la Reforma
Agraria aprovada em 2006 (Almaraz, 2019). A mobilização nacional indí-
gena recente no Brasil, mostra disposição em avançar em vários cenários
contra os consensos da classe política, na defesa do território e pela vida
indígena como ela é.
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