F$M: impressões de um ausente
Euler Conrado*
Na V versão deste evento já bastante conhecido, eu posso dizer que estava ausente, novamente, embora desta vez estivesse quase que presente, já que pude assistir boa parte do que ocorreu por meio da nova TV do Governo Federal, a NBR – via parabólica. Pois bem, me senti tão presente quanto a maioria dos participantes, cuja capacidade de intervenção era quase tão grande quanto a minha diante da telinha: zero. Claro, tinham direito ao aplauso ou às vaias. Não há melhor termômetro de popularidade espetaculosa, embora às vezes legítima, do que palmas e vaias. Lula foi vaiado e aplaudido – neste último caso pela claque de sempre. No Gigantinho, estádio, assisti com grande alegria as vaias e o sinal de reprovação dirigidos por uma massa gigantesca contra o presidente da CUT, Luiz Marinho. Esta mesma entidade, que outrora encabeçara lutas históricas de um proletariado que ainda tinha força para reivindicar, e que se tornara trampolim para eleger deputados federais: Meneghelli, Vicentinho, ambos escudeiros da infeliz base parlamentar de um governo que trai o proletariado na cotidiana política de transferência de renda dos assalariados para os banqueiros e grandes empresários. Eu os condeno, traíras, ao linchamento das vaias toda vez que se colocarem diante de uma massa minimamente esclarecida – não aquela que vocês estão acostumados a controlar e manipular como fazem nas assembléias sindicais de carta marcada ou nos fóruns de partido quando levam suas claques!
Pois bem. Ouvi atento ao discurso de muitos que passaram pelo F$M. Saramago, eu perdi boa parte de sua fala, uma pena, eu estava com noite mal dormida e adormeci durante vários momentos. Monólogos têm essa capacidade. Alguns nos fazem dormir como cantiga suave; outros, como tormento, pesadelo. Acordei no momento em que, num outro momento, o dirigente maior do MST, João Pedro Stedile, criticava duramente o governo Federal, por ter enviado tropas ao Haiti, submisso que fora à invasão do império norte-americano. Pude ainda ouvir a Frei Betto vivendo um dilema moral mal resolvido, de estar ao mesmo tempo contra a política econômica de Meirelles-Palloci e a favor do que ele chama de “portas” abertas pela política social, com os programas do Fome Zero, como se se pudesse separar as coisas assim: política econômica para os banqueiros e política social para os pobres, sem nenhum conflito. Claro, ele bem que sugeriu, como fez o líder do MST, que o povo tome a direção das coisas, se mobilize, assuma seu lugar de protagonismo. Ora, isso sem dúvida pode ocorrer, e o mais certo é que isso se dê não como forma de “pressionar” o Governo Lula para o bom caminho, mas para passar por cima deste governo que se comporta como os demais, cooptando lideranças do movimento social – vide CUT, UNE, etc. – e administrando as contradições em favor dos de cima. Aos de baixo, as migalhas!
Claro que a TV do governo Federal, ainda que como toda TV pública seja bem superior às TVs privadas, como era de se esperar, priorizou os monólogos de pessoas ligadas ao governo, como Olívio Dutra e Patrus Ananias, ministros de Estado da chamada cota social. Praticamente nada sobre a rebeldia autônoma que se estabelece no acampamento da juventude (esse negócio de separar indivíduos por faixa etária – ala jovem, etc., isso era coisa dos antigos partidos comunistas, com suas alas jovens, departamento feminino, etc.).
Rolaram polêmicas que não atingem o centro da questão, sobre a questão da água, por exemplo, seu controle, privado ou estatal, com análises superficiais, como se o domínio estatal fosse sinônimo de domínio coletivo direto, popular, proletário, ou qualquer outro nome que queiram dar. Continuamos a pagar pela água, pela luz, pela comida, com reajustes anuais e sem que tenhamos nenhum controle direto sobre as fontes de vida. Nas mãos de canalhas de empresas privadas que arrancam nosso coro com fabulosos lucros, ou de burocratas da alta hierarquia – não menos canalhas – eu me submeto e me vejo como aquele cidadão pacato diante da telinha, cuja alternativa é a de mudar de canal. Resisti à vontade de fazê-lo, porquanto se me avizinhava alternativas como Gugu Liberato, Faustão, Sérgio Malandro e João Kleber – a que nível a TV que dizem ser concessionária pública chegou! Me lembro aqui das rádios comunitárias, as legítimas, que realmente brotam da indignação dos de baixo, perseguidas feito caça pelos agentes da Polícia Federal a serviço da Globo e associadas menores. Que mundo nós fomos parar!
Pois bem, continuemos. O Fórum tem essa coisa mesclada de falar sobre muita coisa, mas não ter poder real de fazer coisa alguma. Um muro de lamentações. Como essa carta de impressões que eu agora redijo. Bem diferente do ideal daqueles instrumentos espelhados na Comuna de Paris (1871), que deveria funcionar como órgãos ao mesmo tempo de discussão e execução. Aqui, ao contrário, o que vemos é um órgão de reflexão de interesses múltiplos que empana o essencial – o que seria o essencial?, eis uma discussão – para fazer chegar a lugar nenhum. Quando a militância que lotava o Gigantinho vaiava os dirigentes da CUT e do PT, o organizador do evento pedia tolerância, dizia que nosso inimigo principal era “o imperialismo”. Será mesmo? Podemos tratar como “amigos” aqueles que contribuem para a exploração cotidiana do proletariado “nacional” e internacional e que promovem políticas internas de transferência de renda para banqueiros e grandes empresários? Quanto a mim, só sei dizer que enquanto escravo moderno, tanto faz se quem me ferra é um capataz nacional, privado ou estatal, ou um gringo. Continuamos sem direito de ir e vir, sem o controle sobre aquilo que fazemos, sem garantia de que amanhã estaremos assalariados ou sem-salário, lutando por aquilo que Frei Betto chamou de “direito animal” – o de comer, dormir debaixo de um teto, etc.
Um capítulo à parte no F$M foi a presença do presidente venezuelano, Hugo Chávez, aplaudidíssimo num Gigantinho lotado. Falou por mais de uma hora, influência reconhecida do colega cubano. A mídia diz que ele se tornou a nova estrela da esquerda brasileira e latino-americano. Não acho que seja bem assim, embora nossa esquerda bem que faz jus às lideranças que são logo endeusadas. Aliás, neste caso, a nossa esquerda talvez nem estivesse à altura deste personagem, contraditório como todas as lideranças com grande carga de populismo. Chávez pelo menos tem tido a coragem de encarar interesses elitistas de frente, sem as tergiversações e concessões que seu colega brasileno vem fazendo. Talvez até por isso, pela postura de coragem, de enfrentamento – as massas gostam de gente assim, com coragem, uma vez que deve ser duro endeusar e idealizar um bundão, que abre as pernas o tempo todo para os “inimigos”. Só mesmo a massa acrítica que compõe boa parte dos partidos de esquerda.
Chávez, com todo o populismo, personlismo, etc., etc. – quem me conhece sabe o quanto eu não sou chegado a qualquer forma de hierarquia, na recém-reconhecida influência anarco-punk que se somou à antiga influência comunista –, disse algumas palavrinhas mágicas que por aqui praticamente haviam sido abolidas: socialismo, revolução, por exemplo. Para ele, só a revolução contra o capitalismo – e não apenas contra o neoliberalismo – pode libertar a humanidade. Na sua confusão ideológica, citou Che, Fidel, Mao, Marx, Lênin, José Mártir, Bolívar, etc..Uma salada. Contudo, recusou-se ao encanto da guerrilha foquista – que a esquerda agarrara em outra época – dizendo que as massas de milhões de pobres, camponeses, trabalhadores são a única resposta contra o imperialismo e o capitalismo. Ele disse algumas coisas bem diretas para os governantes brasileiros de plantão: 1) não teme conspirar, fustigar e enfrentar as elites, inclusive a norte-americana, pois elas não são invencíveis se o povo estiver mobilizado, 2) vem cumprindo todos os seus compromissos de campanha, 3) sua política está voltada para os pobres, com agressivos planos de educação, saúde (contratou 20 mil médicos cubanos para atender a periferia, adotou o método cubano de Educação e disse que saúde e educação não podem ficar nas mãos de empresas privadas), 4) disse com todas as letras que o que está em marcha na Venezuela é uma revolução, que opõe de um lado o povo – trabalhadores, camponeses, exército, etc. – e, de outro, as elites – latifundiários, grandes empresários. Ou seja, pelo menos no discurso, não veio com essa ladainha de conciliar interesses antagônicos, como se vê por aqui. Talvez por isso tenha sido a personalidade mais aplaudida do Fórum.
Mas, no geral, o F$M, desta vez visto como boa parte dos seus organizadores desejam, de forma midiática e espetaculosa, reforçou-me a idéia de que aquele encontro está muito distante ainda de um diálogo horizontal. E que as contradições ali são tão grandes que dificilmente se pode estabelecer algo prático. Não há unidade para lutar, por exemplo, contra a política econômica do governo, pois boa parte dos organizadores do F$M estão no governo. Não dá para lutar contra a guerra imperialista de ocupação, pois o próprio governo local participa desta guerra, como no Haiti, ou através de empresas como a Odebrech. Não dá para lutar contra a privatização das fontes da vida, pois muita gente lucra com isso, seja os empresários diretos, ou os burocratas de Estado (assessores, parlamentares, ministros, etc.). Portanto, não há unidade mínima em torno de interesses comuns e o máximo a que chegam é aos protestos formais contra a guerra imperialista e o lamento perante o capital, clamando para que este tenha dó dos pobres, que dê ao menos uma pequena, ínfima porcentagem dos lucros para diminuir a fome (nem precisa acabar com ela!) no mundo. Lula, no Fórum de Dávos (ele participa dos dois, claro, já que para ele não há contradição, e talvez ele tenha razão neste particular), disse que a taxa que ele reivindica dos ricos para matar a fome dos miseráveis (pode ser num período de 30 anos, diz) poderia vir das transações financeiras, ou até mesmo da produção bélica. Assim, imagina-se que quanto mais guerras, maior será a migalha repassada para os famélicos da sorte. Que mundo!
No mais, é rezar. Igrejas e Deuses não faltam. Faça a sua escolha.
* professor de História nas horas vagas, autor de dois livros: Casos & Coisas da minha terra (2000) e Baiano Travesso – diálogos sobre Carlos Marighella e a resistência armada ao golpe militar de 64 (este último ainda não publicado).