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Em busca da liberdade – traços das lutas escravas no Brasil (2)

16.03.06

Olá,

A seguir, você vai encontrar a segunda parte do estudo “Em busca da liberdade – traços das lutas escravas no Brasil”. O próximo capítulo será enviado até o dia 15 de abril.

Como sempre, respeitado o texto original e citada a fonte, o uso deste material é livre.

Grande abraço e boa leitura.

Nádia, a coruja vermelha.

1. O quilombo de Palmares.

Recuperadas as energias, o corpo assume novamente o seu lugar na mesa. Esticados, os braços se alongam sobre as folhas do relato enquanto o entrelaçar-se dos dedos parece prepará-los para a etapa que está por vir.

Apoiando o queixo na ponta da asa esquerda, Nádia retoma pensativa o caminho já percorrido. O silêncio de reflexão só é rompido pelo rápido virar das folhas e pelos gestos com os quais a direita parece desenhar no ar o que está preste a ser transformado em palavras. Limpada a garganta, um “É isso!” pronunciado em alto e bom som sinaliza que a ave já está pronta para iniciar os trabalhos.

- “Em primeiro lugar – diz a coruja cadenciando as palavras – vale a pena lembrar que o quilombo de Palmares ganha este nome porque na região onde serão construídas suas aldeias abundam várias espécies de palmeiras. Estas, mescladas a espinhos, cipós e arbustos típicos da floresta tropical, dão origem a uma mata fechada que, em muitos trechos, forma uma barreira natural impenetrável.

Quase nada sabemos sobre os escravos que dão origem a este quilombo, mas alguns relatos apontam o ano de 1597 como o período provável de sua fundação. Durante uma noite, um grupo de, aproximadamente, 40 cativos teria fugido de um engenho da capitania de Pernambuco, atual estado de Alagoas, após massacrar a população livre que aí se encontra. Sabendo que a notícia se espalharia rapidamente pelas áreas vizinhas e que logo estariam sendo perseguidos, aos rebelados não resta outra saída a não ser a fuga. Em sua peregrinação, chegam a um lugar áspero e montanhoso onde de uma das serras, muito íngreme, se pode observar toda a região. No topo desta, que, pela sua forma, ganha o nome de Serra da Barriga, vão abrir clareiras e levantar choças cobertas de palha.

De início, o medo dos castigos, os perigos e as dificuldades da vida na selva levam bem poucos negros a fugirem para Palmares. Pressionados pelas necessidades, os quilombolas não demoram em realizar incursões nas fazendas e engenhos mais próximos com o intuito de seqüestrar escravos, raptar mulheres, se abastecer de armas, pólvora, ferramentas de trabalho, além de, não poucas vezes, exercer sua vingança ateando fogo nas plantações e matando os feitores.

Diante destes assaltos, os senhores de engenho se defendem como podem. No início do século XVII, a gravidade do problema atrai as atenções das autoridades coloniais. Em 1602, Diogo Botelho, terceiro governador geral do Brasil, organiza a primeira expedição contra o quilombo. Esta retorna dizendo ter desbaratado o refúgio dos negros, mas, seis anos depois, a notícia de que Palmares continua dando muitas dores de cabeça é levada ao rei de Portugal por Diogo de Menezes.

Sobrevividos aos primeiros ataques, os rebeldes palmarinos vão intensificando suas ações. A fama de Palmares aumenta e estimula novas fugas de escravos que vão se somando à população quilombola”.

- “Bom, depois de falar da sua origem, será que daria para dizer algo sobre como é a vida neste reduto de negros fugidos?”, solicitam os lábios entre a curiosidade e o temor de que a pergunta acabe aumentando o trabalho de redação.

Balançando a cabeça em sinal de aprovação, a ave começa a organizar as idéias. Após um rápido bater de asas que espalha pó e ferrugem sobre os papéis já escritos, Nádia fixa o olhar na caneta ainda imóvel e diz:

- “Dos fragmentos de história que falam deste momento, sabemos que, para poder matar a fome, os palmarinos se dedicam inicialmente à caça, pesca, à coleta de frutas e raízes. Com o tempo, criam instrumentos de madeira para lavrar a terra e, após encontrar minério de ferro em seu território, começam a forjar armas de corte e ferramentas para o trabalho agrícola.

Nas clareiras abertas na mata, as terras recebem plantações de milho, feijão, mandioca, batata, cana-de-açúcar, legumes, uma grande variedade de árvores frutíferas ao mesmo tempo em que nas aldeias do quilombo se criam porcos e galinhas.

Os cativos que fogem para Palmares são inicialmente submetidos a um período de prova durante o qual executam vários trabalhos. Julgados merecedores de confiança, ingressam numa família e começam a ter acesso à terra.

Pouco a pouco, a penúria dos primeiros tempos é vencida graças a um trabalho coletivo que desenvolve uma economia comunitária de auto-subsistência onde, fora os objetos de uso pessoal, as terras, os instrumentos de trabalho, as casas e as oficinas pertencem ao mocambo. Com base na propriedade coletiva de todos estes recursos, as famílias cultivam a terra não só para o próprio sustento, mas também para produzir um excedente a ser utilizado por toda a comunidade. Além de servir de provisão para a ocorrência de períodos de seca, pragas ou ataques externos, esta parte da produção é destinada à alimentação de guerreiros, idosos, doentes e artesãos que não realizam trabalhos agrícolas.

Entre a população dos mocambos palmarinos, os homens constituem a esmagadora maioria. Como nas fazendas e nos engenhos a maior parte dos escravos é do sexo masculino, o número de mulheres que fogem para o quilombo é, proporcionalmente, bem menor. A constante penúria de representantes do gênero feminino dá origem à família poliândrica, na qual uma mulher se relaciona com mais homens de uma mesma aldeia. Na divisão do trabalho, a esmagadora maioria dos homens está empenhada nas atividades produtivas ao passo que às mulheres, chefes dos núcleos familiares assim constituídos, cabe a organização, a coordenação e a supervisão das várias atividades produtivas.

Além disso, é importante lembrar que os membros da comunidade palmarina têm origem étnica diferenciada e que a presença de índios, pardos e brancos em seu meio acaba atenuando as características das identidades tribais africanas. Desta mistura, nasce uma língua na qual dominam as expressões dos idiomas falados pelos negros, mas que incorpora elementos tanto do tupi como do português. Processo bem parecido ocorre também com a religiosidade onde as imagens das divindades cultuadas na África partilham altares com as de Jesus, Nossa Senhora da Conceição e São Brás.

Pouco sabemos das instituições políticas anteriores a 1630. Os documentos existentes revelam que todos os moradores reunidos em assembléia escolhem os membros de um conselho. Este, por sua vez, elege um chefe, cujos poderes, apesar de amplos, não dispensam a consulta popular quando estão em jogo decisões cruciais para a vida do quilombo. Nesta época, o número de negros congregados na Serra da Barriga não passa de mil e seus esforços de ampliar a revolta entre a massa escrava dificilmente seriam coroados de sucesso não fosse por uma ajuda tão inesperada quanto decisiva: o ataque holandês a Pernambuco”.

- “Holandeses…?!? Na capitania de Pernambuco…?!? Por que é que eles resolvem vir até aqui? E o que é que isso tem a ver com Palmares?”, prorrompe a língua numa seqüência de perguntas.

Após um longo suspiro, a coruja levanta as asas e fechando os olhos diz:

- “Calma! Uma coisa por vez! Pra início de conversa, é bom lembrar que, até a segunda metade do século XVI, os territórios dos atuais estados da Bélgica e da Holanda são parte do Reino da Espanha. Com o progresso das cidades que neles se desenvolvem vai florescendo também uma próspera burguesia de comerciantes e agiotas. A adesão desta à reforma protestante fortalece o seu espírito nacionalista e acaba incentivando a luta contra a dominação espanhola. A situação se torna cada vez mais tensa até que, em 1567, os comerciantes holandeses organizam uma rebelião contra o rei da Espanha que, há tempo, vem cobrando salgados impostos sobre suas atividades.

Em resposta, os ibéricos enviam uma expedição punitiva que só consegue exacerbar os ânimos. Os enfrentamentos continuam até 1609 quando a Espanha se vê obrigada a assinar uma trégua na qual reconhece a separação dos territórios.

No início do século XVII, a República das Províncias Unidas (Holanda e Bélgica) possui uma frota de navios mercantes bem superior a de todos os países europeus juntos e suas principais cidades são as maiores praças financeiras e mercantis do continente. Quanto ao Brasil, o que você não sabe é que, até este momento, são os comerciantes daquelas terras a financiar parte da instalação dos engenhos, além de controlar uma boa fatia do transporte e da comercialização do açúcar.

O problema é que, após a guerra, o trono português passa para as mãos da Espanha, e estes negócios extremamente lucrativos correm o risco de ir por água abaixo na medida em que o rei espanhol proíbe terminantemente que os holandeses comercializem os gêneros produzidos nas colônias do seu reino. Diante desta realidade, a burguesia da República das Províncias Unidas se vê obrigada a ir buscar tais produtos nos países de origem, ou seja, a se instalar em territórios coloniais já ocupados por outras nações européias.

O açúcar brasileiro está entre as mercadorias mais cobiçadas. Por isso, após várias tentativas, em fevereiro de 1630, o litoral de Pernambuco é invadido pelas tropas holandesas na altura da cidade de Olinda. Cinco anos depois, graças ao apoio de setores da elite local, estas mesmas forças já detêm o controle das capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Silenciadas as armas, banqueiros e companhias comerciais impulsionam a retomada da produção açucareira através de empréstimos destinados à reconstrução dos engenhos destruídos ou depredados durante a guerra enquanto a esquadra holandesa ajuda a superar a escassez de escravos investindo pesado nas rotas do tráfico com a África.

Em 1644, porém, as relações entre os novos colonizadores e os proprietários dos engenhos começam a se complicar na medida em que os últimos não têm condições de pagar as altas taxas de juros que pesam sobre os créditos obtidos. Diante de um possível calote, os credores respondem ameaçando confiscar terras, bens, gado e escravos como forma de saldar as dívidas. Esta medida alimenta o ódio dos senhores e a idéia de expulsar os holandeses começa a ganhar consistência.

Os primeiros sinais de revolta explodem no Recife em 13 de junho de 1645. Aos vários enfrentamentos que se sucedem, em 1652, acaba se somando a declaração de guerra da Inglaterra que obriga a República das Províncias Unidas a desviar amplos recursos para responder às investidas das forças armadas inimigas. Ao mesmo tempo, Londres começa a abastecer de armas, dinheiro e munições os revoltosos pernambucanos de cuja ação espera um ulterior enfraquecimento da capacidade de resposta da Holanda, sua direta concorrente na disputa pela hegemonia marítima e comercial.

No ano seguinte, a frota de guerra portuguesa chega ao litoral de Pernambuco. Enfraquecidos pelas derrotas diante dos ingleses e sem condições de sustentar seus domínios no Brasil, em 26 de janeiro de 1654, aos holandeses não resta outra alternativa a não ser a de assinar a rendição”.

- “E…o que é que isso tem a ver com Palmares?”, questiona o secretário enquanto a coruja faz uma pausa para retomar o fôlego.

- “Simples, meu querido bípede apressado! – responde Nádia demonstrando não ter perdido o fio da meada. Se o seu cérebro acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, não vai ter dificuldade em perceber que tempo de guerra é sinônimo não só de tensão, como de grande confusão. A debandada das autoridades coloniais portuguesas, o êxodo de senhores de engenho para o sul e a mobilização militar para enfrentar os holandeses provocam a desorganização do sistema de vigilância e repressão da qual se aproveitam tanto os índios quanto os negros.

Esta situação desencadeia uma sucessão de fugas espontâneas e isoladas, desarticuladas entre si e sem um nível de organização consciente. Em alguns casos, os escravos aproveitam para acertar contas com amos e feitores, incendeiam os canaviais, destroem os engenhos e, munidos de armas de fogo, facões e lanças, se dirigem para Palmares.

Após sua incorporação no quilombo, os fugitivos são organizados em colunas cujas expedições vingadoras pelo litoral da capitania apressam a derrota dos portugueses e assustam os próprios holandeses sob cuja dominação as condições de vida e de trabalho da massa escrava se tornam ainda mais amargas. O maior rigor na aplicação dos castigos visa não só coibir as possibilidades de novas rebeliões como arrancar mais trabalho dos africanos recém-chegados para pagar os juros extorsivos e preservar o padrão de vida dos senhores de engenho.

Mesmo assim, a quantidade de escravos que aproveita da invasão holandesa para fugir é tamanha que, em pouco tempo, o quilombo fica superpovoado. Isso leva os negros a fundarem novos mocambos no interior da Serra da Barriga e até longe dela, em lugares onde as terras são férteis e podem ser facilmente defendidas. De acordo com uma crônica de 1678, a população de Palmares chega a ser estimada em cerca de 20.000 pessoas.

Majoritariamente composto por negros de origem africana, o quilombo abriga também um crescente número de índios, mamelucos, pardos e brancos que, durante a invasão holandesa, aí se refugiam para escapar de um conflito em cujo desfecho não têm o menor interesse. A fartura que agora reina em território palmarino atrai tanto pequenos proprietários das redondezas como até mesmo soldados das expedições organizadas para destruir os mocambos.

A laboriosidade dos quilombolas, reconhecida pelas próprias autoridades portuguesas, não deixa dúvidas quanto ao fato de que é por ser escravo, e não por ser negro, que o africano trazido pelos traficantes produz pouco e mal nas plantações e nos engenhos.

Em tempo de paz, o aumento da população acompanhado pela expansão das roças e das atividades artesanais produz excedentes que começam a ser trocados por armas, munições e sal em vários pontos da capitania. Em muitos povoados, o intercâmbio pacífico cria uma rede de interesses que se opõe aos que procuram destruir Palmares. Compostos por camponeses que não se utilizam de trabalho escravo, seus moradores atuam no sentido de conviver com os mocambos. Pois, caso estes venham a sucumbir, as pastagens e as roças formadas para a própria subsistência acabariam nas mãos dos grandes proprietários pernambucanos aos quais haviam sido legalmente cedidas pela coroa ou pelos governantes locais. Por isso, além de servir de base avançada para as incursões quilombolas, estes setores se preocupam em fornecer-lhes informações sobre as posições do inimigo e em criar empecilhos às expedições punitivas”.

- “Sendo assim, podemos concluir que Palmares tem um futuro promissor…”, conclui o humano sem esconder sua intenção de reduzir o trabalho que lhe cabe.

Em resposta à tentativa de chegar logo aos finalmentes, a ave deixa transparecer um sorriso maroto. O balançar da cabeça sinaliza que o resgate deste capítulo da história ainda vai conhecer novas etapas e, ao recostar o corpo na pilha de livros, não perde a chance de repreender o seu ajudante:

- “A pressa é sempre uma péssima conselheira, sobretudo quando se trata de analisar as lutas dos oprimidos. Por isso, espante a preguiça e use as energias para entender as pegadas que o passado faz chegar até nós!

Contrariando suas expectativas, o quilombo começa a enfrentar problemas sérios justo após a derrota dos holandeses, quando as autoridades coloniais portuguesas se voltam para a tarefa de destruir o inimigo interno que se esconde nas matas. Além da urgência de extinguir um perigoso foco de rebeldia escrava, outras três razões levam a elite a investir contra os mocambos palmarinos.

A primeira delas deita raízes na necessidade de envolver nestas campanhas militares a multidão de famintos e belicosos ex-combatentes que, vencida a guerra contra a Holanda, reivindicam as recompensas prometidas como pagamento dos sacrifícios suportados. Como as terras arrebatadas já foram apropriadas pelos senhores de engenho, a única maneira de reduzir o descontentamento deste contingente é envolvê-lo num novo projeto de conquista como condição para ter acesso a um mais gordo botim.

Ao lado deste grupo, há outro formado por negros que entre a escravidão e a promessa de deixar o cativeiro, caso viessem a integrar as tropas portuguesas, haviam escolhido a segunda possibilidade por acreditar que, em caso de vitória, conquistariam de vez a própria liberdade. Desiludido com a não ratificação de suas alforrias, parte deles se integra a Palmares enquanto os demais não hesitam em dar sinais claros de insubordinação.

Última, mas não menos importante, é a posição dos senhores de engenho em função dos prejuízos sofridos durante a guerra. O desejo de recuperar os escravos fugidos é fartamente alimentado pela prostração econômica da capitania onde a falta de recursos impede a importação imediata de africanos em número suficiente para recuperar as lavouras. Sabendo que, nesta época, 200 cativos têm o mesmo valor de um engenho de primeira categoria, ninguém vai ter dificuldades em entender porque a perspectiva de caçar negros em Palmares ganha um incentivo econômico que não pode ser desconsiderado.

Impulsionadas por estas razões, no segundo semestre de 1654, as autoridades coloniais iniciam uma série de expedições militares que se estendem até 1659. Além de fracassarem ou conseguirem resultados bem inferiores ao esperado, os palmarinos capturados não se submetem ao trabalho escravo e, cedo ou tarde, acabam fugindo novamente para o quilombo”.

- “Que mal lhe pergunte, por que todas estas investidas armadas acabam sendo derrotadas?”.

- Como já disse nas páginas anteriores, a região ocupada pelo quilombo é de mata fechada e de difícil acesso. Além de impedir a localização exata dos mocambos e de ocultar os guerreiros palmarinos, a própria selva impõe enormes dificuldades às expedições que procuram destruir os redutos de resistência. Nesta época, entre o litoral e a Serra da Barriga, não há nenhum caminho pelo qual possam transitar carros e carruagens. Isso significa que, além da rede para dormir e das roupas, cada soldado deve carregar nas costas uma pesada mochila com todos os mantimentos aos quais se somam uma boa porção de pólvora, balas, espingarda, espada, facão e cabaça de água.

Com a coluna marchando em fila indiana entre despenhadeiros e áreas onde a vegetação dificulta o seu avançar, os comandantes não só não podem contar com a vantagem tática da surpresa, como são vítimas dos quilombolas que se ocultam na mata. As condições adversas do clima, a fadiga, as doenças e a fome, via de regra, se encarregam sozinhas de dobrar a resistência dos expedicionários. Quando as coisas se complicam, graças à rede de informantes espalhados pelos povoados, os chefes conseguem evacuar os mocambos abrangidos pelos planos inimigos e esconder suas populações selva adentro.

Ao chegarem num destes, os comandantes acampam suas colunas e, em seguida, enviam pequenos grupos de soldados para vasculhar o mato. Contando com o conhecimento do terreno, os palmarinos provocam os destacamentos a fim de afastá-los de suas bases para, em seguida, desferir contra eles ataques que costumam ser mortais.

A aparente superioridade bélica das forças oficias é neutralizada pelo peso excessivo do armamento e pela demora na repetição dos tiros, o que permite aos negros usar com certa vantagem as armas de que dispõem em ataques rápidos e desconcertantes seguidos de fugas para o interior da selva.

Pouco a pouco, estes elementos criam as condições para que o desespero e o pânico tomem conta das tropas oficiais e levem muitos soldados a desertarem. Frente a esta realidade, as autoridades coloniais se deparam com dois problemas essenciais: a exata localização das povoações palmarinas e o desenvolvimento de uma tática militar adequada ao meio geográfico.

Enquanto isso, entre 1667 e 1670, os quilombolas multiplicam suas ofensivas nas redondezas de Serinhaém, Ipojuca, Porto Calvo e Penedo com o objetivo de libertar os escravos das fazendas e dos engenhos, justiçar amos e feitores, conseguir armas e munições, queimar os canaviais e mergulhar o inimigo num clima de terror.

Nos anos seguintes, as coisas não são muito diferentes e os governantes reagem preparando novas expedições e prometendo a quem delas participasse a propriedade dos negros aprisionados, o perdão dos crimes cometidos e, aos nobres, a nomeação para funções da vida pública. Apesar das dificuldades, as tropas oficiais começam a lançar mão de uma tática adotada com sucesso contra os índios na Bahia: construir casas fortificadas e entrepostos que servem de bases avançadas às quais são remetidas mensalmente determinadas quantidades de comida, armas, munições e demais recursos necessários para prolongar os assaltos e destruir os meios de sobrevivência dos adversários.

Além de reduzir a distância entre os soldados e os centros de abastecimento, a presença de destacamentos fixos permite oferecer um tratamento brando aos quilombolas que se rendem e uma ação mais rigorosa contra os que, ao oferecer resistência, caem nas malhas da repressão”.

- “Pelo que você acaba de dizer, as forças coloniais começam a mudar sua forma de atuação. Mas, enquanto isso dá os primeiros passos, o que está acontecendo em Palmares? Será que a organização do quilombo permanece igual ao que era?”

- “Na verdade – responde Nádia ao piscar os olhos -, a ampliação do número de escravos que aí se refugiam leva os mocambos palmarinos a desenvolverem uma estrutura centralizada, e relativamente complexa, que busca aperfeiçoar tanto os vínculos de cooperação recíproca como os mecanismos de defesa militar propriamente ditos. Além de trocarem informações, se ajudarem em tempos de seca e más colheitas ou abrigarem as povoações atingidas pelas expedições coloniais, os quilombolas criam formas de assistência militar para enviar comandantes e destacamentos de guerreiros a defender as áreas ameaçadas pelo inimigo comum.

Ao que tudo indica, os moradores de cada mocambo elegem em assembléia um grupo de autoridades chamadas Maiorais às quais cabe exercer funções político-administrativas e que gozam de completa autonomia para as questões locais. Ao lado delas, encontramos os Cabos-de-guerra, comandantes militares designados pelo que podemos chamar de chefe de estado da confederação palmarina e aprovados pelo seu conselho, composto por representantes dos Maiorais.

Apesar de sua posição hierárquica, este chefe não detém um poder absoluto sobre seus subordinados devendo observar um complexo conjunto de normas que definem suas funções legais e militares. Escolhido por sua coragem, força e capacidade de comando, o ocupante deste posto pode ser destituído caso sua conduta não seja condizente com as normas do quilombo. O seu governo efetivo é circunscrito à área de Macaco, o principal povoado de Palmares, e não lhe é permitido tomar decisões que atingem os demais mocambos sem ouvir o conselho dos Maiorais. Entre as personagens que ocupam o cargo, encontramos Ganga-Zumba que chega na Serra da Barriga durante a ocupação holandesa e se empenha a celebrar o pacto de ajuda militar recíproca entre as povoações palmarinas.

No que diz respeito às instituições militares, há uma milícia permanente de soldados profissionais distribuídos em guarnições pelos mocambos ou organizados em destacamentos móveis para as operações guerrilheiras. Nas situações de emergência, porém, todos os homens válidos são convocados a pegarem em armas.

Apesar do crescente investimento no treinamento de suas forças armadas e de sua estrutura administrativa, a organização social de Palmares não nasce da necessidade de sufocar conflitos que deitam raízes numa ordem de exploração ou de privilégios, mas sim da urgência de assegurar a defesa e a sobrevivência do quilombo diante dos desafios impostos pelo seu crescimento interno e pelas expedições cada vez mais ameaçadoras organizadas pelas autoridades coloniais.

Mas a vida em Palmares não é um mar de rosas – acrescenta a coruja preocupada em não mistificar um momento de luta. A expedição de 1677, comandada por Fernão Carrilho, impõe derrotas que desencadeiam um profundo descontentamento na massa palmarina. Esta acusa o seu chefe supremo, Ganga-Zumba, de ter agido com inépcia e irresponsabilidade ao comandar, bêbado, a principal operação de guerra contra as tropas coloniais que conseguem destruir o mocambo de Amaro (com mais de mil casas) e capturar dezenas de guerreiros, além de autoridades locais e de dois filhos de Ganga-Zumba.

Em todos os vilarejos do quilombo, com exceção de Macaco, a população realiza assembléias que pedem a deposição do chefe palmarino. Levada ao conselho geral, esta proposta acaba sendo derrotada pelas manobras internas de Ganga-Zumba.

Longe de diminuir, o descontentamento em relação ao chefe supremo aumenta e Zumbi conspira para depô-lo pela força. Sentindo-se ameaçado, Ganga-Zumba aceita iniciar as conversações de paz que as autoridades coloniais vêm oferecendo após a expedição de Fernão Carrilho. Deste processo nasce o Pacto de Recife, assinado em 5 de novembro de 1678. A paz com os portugueses prevê a liberdade para os nascidos no interior do quilombo (o que implica em reconduzir os demais ao cativeiro), a concessão de terras para viverem e cultivarem, a garantia de poder comercializar os próprios produtos com os povoados vizinhos e a outorga do título de vassalo da coroa a Ganga-Zumba.

Os termos do acordo acirram a oposição e as resistências internas, sobretudo pela cláusula que devolve à senzala todos os fugitivos abrigados no quilombo. O número reduzido dos que seguem o antigo chefe (de 300 a 400 pessoas) revela a falta de confiança dos palmarinos nos compromissos assinados pelas autoridades coloniais.

Diante dos acontecimentos, Zumbi reúne os guerreiros do seu mocambo e marcha contra os que ainda se mantêm fiéis a Ganga-Zumba. Com as adesões conseguidas em sua jornada, o novo líder leva as tropas rumo ao principal mocambo de Palmares. Percebendo a impossibilidade de enfrentar seus adversários, Ganga-Zumba foge para Cacaú. Mas, após derrotar uma frágil resistência armada, as forças leais a Zumbi ocupam Macaco e este assume o cargo mais alto da confederação palmarina.

Apesar da vitória, os problemas estão longe de terminar. De um lado, a deserção de importantes comandantes militares, fugidos com Ganga-Zumba, leva a crer que, de agora em diante, os portugueses contam com informações completas sobre a vida e a organização de Palmares. De outro, nem toda a população e autoridades de Macaco se dispõem a serem fiéis ao novo chefe.

Sem perder tempo, Zumbi subordina a vida do quilombo às exigências da guerra contra as expedições oficiais. De um lado, promove um sangrento expurgo dos partidários de Ganga-Zumba, e, de outro, desloca mocambos para lugares estrategicamente mais seguros, acelera a busca de armas e munições, intensifica o adestramento militar de todos os homens válidos, multiplica os pontos de vigilância e observação nas orlas das matas, reforça o sistema defensivo de Macaco e decreta uma lei pela qual toda tentativa de deserção é punida com a morte”.

- “Pelo visto, isso altera vários aspectos da sociedade palmarina. Mas será que antes de passar aos próximos acontecimentos, você poderia dizer mais alguma coisa sobre Zumbi?”, pede o secretário ao procurar entender melhor a figura deste homem que intervém de forma decisiva num momento crítico da vida de Palmares.

Ouvida a solicitação, a ave começa a andar pensativa de um lado a outro da mesa. Após instantes de silêncio nos quais a memória tenta recuperar as informações disponíveis, o franzir das plumas da testa anuncia que pode atender o novo pedido. Só mais um rápido piscar de olhos e…

- “Das poucas notícias que temos, parece que Zumbi nasce em 1655 num dos vários mocambos palmarinos. Capturado naquele mesmo ano pela expedição comandada por Brás da Rocha Cardoso, o menino é dado como presente ao padre português Antonio Melo, do distrito de Porto Calvo, próximo à região de Palmares. Nas cartas escritas pelo padre a um amigo da cidade do Porto, em Portugal, consta que, após batizá-lo com o nome de Francisco, lhe ensina a ler, o faz seu coroinha, mas nunca chega a tratá-lo como escravo.

Em 1670, porém, para surpresa do próprio Antonio Melo, o adolescente de 15 anos foge para Palmares, onde assume o nome de Zumbi. Anos depois, quando já é chefe do quilombo, Zumbi volta a visitar o padre que o acolheu pelo menos três vezes e, sabendo da miséria em que este se encontra, lhe leva alguns presentes.

Em 1672, é eleito Maioral e, no ano seguinte, se torna Cabo-de-guerra após os combates que levam à derrota da expedição de José Bezerra. Aos 22 anos, Zumbi comanda parte das milícias palmarinas contra as investidas das tropas e Fernão Carrilho, ocasião na qual a direção geral das operações militares está nas mãos de Ganga-Zumba.

Não existem relatos que comprovem o seu casamento com uma mulher branca chamada Maria que o teria supostamente acompanhado após uma incursão num engenho. Consta que deve ter tido, pelo menos, cinco filhos e que durante uma batalha contra os homens de Manuel López Galvão, recebe um ferimento que o deixa coxo.

A sua coragem e o seu espírito de liderança impressionam também as autoridades coloniais. Numa crônica encomendada pelo governador Pedro Almeida, Zumbi é descrito como negro de singular valor, grande ânimo e constância rara cuja capacidade de ação juízo e fortaleza aos nossos serve de embaraço e aos seus de exemplo”. [1]

Pronunciadas estas últimas palavras, a coruja interrompe o relato. Seu rosto assume uma expressão séria e compenetrada. Passo a passo, se aproxima do secretário e apoiando a asa esquerda no ombro deste ordena:

- “Vamos voltar aos fatos que nos levam ao desfecho deste capítulo da nossa história! Como estávamos dizendo, as mudanças no interior do quilombo não procuram só consolidar a posição de Zumbi, como preparam seus povoados para novos e mais duros enfrentamentos com as forças coloniais.

Mas isso não é tudo. Fortalecida a sua liderança, o novo chefe palmarino procura minar a de Ganga-Zumba em Cacaú e recebe uma ajuda inesperada que facilita os seus planos.

Usando como pretexto o fato de que a concentração de negros livres em Cacaú representa um perigo para a manutenção da ordem em suas propriedades, os senhores de engenho lançam mão de contingentes armados para cercar os territórios entregues a Ganga-Zumba. Em seguida, começam a realizar incursões para capturar escravos fugidos das propriedades e, sem se deixar intimidar pelos protestos do próprio Ganga-Zumba, começam a devastar as roças e a impedir o comércio entre Cacaú e as populações vizinhas.

Os quilombolas que haviam acompanhado o antigo líder se sentem ludibriados. Uns voltam para Palmares, outros começam a contrabandear armas, a ajudar escravos fugidos a chegarem no quilombo ou a transmitir informações. Este processo forja novas lideranças que a história conhece pelos nomes de João Mulato, Canhongo, Amaro e Gaspar. Ao permanecerem em Cacaú, os quatro conspiram ativamente contra Ganga-Zumba. Sentindo-se descobertos, resolvem apressar os acontecimentos envenenando o antigo chefe e matando seus homens de confiança.

Só Gana-Zona, irmão de Ganga-Zumba, escapa do massacre e organiza a resistência em Cacaú. A luta entre as duas facções degenera em carnificina e os combates prosseguem mato adentro até que as tropas oficiais resolvem intervir. Capturados e degolados os líderes, seus cerca de 200 seguidores são entregues como escravos aos proprietários da região. A tentativa de esvaziar Palmares com a criação de uma área onde parte dos antigos quilombolas poderia supostamente viver em liberdade chega ao fim.

Diante dos acontecimentos, os palmarinos multiplicam suas irrupções em diferentes pontos do litoral. Grupos de até 50 homens entram de surpresa em povoados e plantações para se apoderarem de escravos, armas e munições. Os senhores de engenho que viajam pela capitania são freqüentemente assaltados e despojados de todos os seus haveres. Um clima de medo e insegurança toma conta da região.

Em 16 de fevereiro de 1680, o governador entrega ao capitão-mor, André Dias, o desafio de reprimir os destacamentos armados do quilombo. Seguidos fracassos o obrigam a oferecer a Zumbi o perdão e a liberdade caso este opte por depor as armas. Uma nova seqüência de enfrentamentos e incursões marca a resposta negativa de Palmares e sinaliza a intensificação dos conflitos.

Preocupada com a situação, a elite local pressiona as autoridades para que organizem uma verdadeira cruzada contra o quilombo. Em 1693, este anseio acaba se espalhando pela capitania na medida em que os efeitos da queda do açúcar no mercado internacional são agravados pela estiagem e pela inflação que espalham a fome entre a população. Sob a pressão dos senhores de engenho, o fato dos palmarinos não conhecerem estes males e manterem suas invasões leva pequenos proprietários, comerciantes, assalariados rurais, ou seja, grande parte dos setores pobres da população livre a verem no aniquilamento do quilombo a única possibilidade de pôr fim aos seus sofrimentos.

Em dezembro do mesmo ano, cerca de 3.000 homens entre brancos, negros, índios e mamelucos começam a se concentrar em Porto Calvo para a guerra contra Palmares. No início de janeiro de 1694, a tropa comandada por Domingos Jorge Velho já soma cerca de 9.000 homens (exército que supera em mais de 2.000 soldados aquele com o qual os holandeses haviam conquistado Pernambuco) e inicia sua marcha em direção a Macaco”. [2]

- “As coisas estão ficando feias. Resta saber se as dificuldades que ajudaram a destruir as expedições anteriores vão dar mais uma mãozinha aos quilombolas…”, especulam os lábios intrigados diante da demonstração de força colonial.

- “O problema, querido secretário, é que, diante das mudanças que vão ocorrendo, a construção das vitórias palmarinas do passado não garante a invencibilidade dos seus guerreiros – comenta Nádia em tom nada animador.

As expedições que visam destruir o quilombo após a derrota dos holandeses impõem uma guerra prolongada atenuada apenas por breves intervalos de paz. Além dos problemas provocados pelos seguidos deslocamentos das populações não-combatentes dos povoados ameaçados, e da conseguinte perda de suas casas, lavouras e oficinas, a tática de guerra que, durante anos, tem proporcionado as vitórias de Palmares começa a não ter o efeito desejado diante das ações do poder colonial que a tornam inoperante.

Uma delas consiste na criação de novos arraiais que ajudam a reduzir as distâncias entre os centros de abastecimento e as tropas. Para você ter uma idéia, se até 1650, uma expedição levava de 20 a 30 dias só para penetrar na região de Palmares, Domingos Jorge Velho chega na Serra da Barriga em uma semana. Além de reduzir a carga a ser levada por cada soldado, esta proximidade permite destruir sistematicamente as plantações palmarinas das redondezas graças a destacamentos móveis que, com base nestes povoados, têm melhores possibilidades de realizarem incursões mato adentro.

A isso é necessário acrescentar que Zumbi tem tamanha confiança nos recursos bélicos reunidos sob a sua liderança a ponto de considerá-los suficientes para derrotar qualquer adversário. Os armazéns de víveres, os cinco quilômetros de cerca, as defesas naturais, as armas e o treinamento de seus guerreiros fariam com que, mesmo sitiadas, as forças palmarinas pudessem resistir, esgotar seus agressores e impor-lhes novas derrotas. O problema é que Zumbi não conta com uma vantagem técnica que agora está ao alcance de seus inimigos: o canhão.

Contrariando as previsões quilombolas, Domingos Jorge Velho usa os 22 dias de sitio a Macaco para construir uma outra cerca que permita ao seu exército de se proteger dos ataques palmarinos e cuja distância das fortificações inimigas deixa o principal mocambo de Palmares na alça de tiro de suas 6 peças de artilharia pesada.

Ciente da impossibilidade de vencer a expedição usando as táticas costumeiras, Zumbi reúne o conselho de guerra que opta pela única manobra militar capaz de oferecer resultados promissores. Na noite entre o dia 5 e 6 de fevereiro, uma coluna de negros tenta aproveitar uma brecha nas posições inimigas para descer da montanha e tentar desferir um ataque pelas costas deixando os soldados coloniais entre dois fogos. Descoberta por uma sentinela, a tentativa fracassa pela rápida resposta dos contingentes da expedição.

Ao amanhecer, os canhões destroem as defesas de Macaco e as tropas de Domingos Jorge Velho irrompem na cidadela dando início a uma verdadeira carnificina. Apesar de sua resposta heróica, a resistência palmarina é destroçada, as casas são queimadas e 510 quilombolas são feitos prisioneiros.

Esmagado o principal reduto, a matança se espalha pelos demais mocambos. Das mulheres e crianças poupadas para serem vendidas como escravas, grande parte se deixa morrer de fome ou mata os próprios filhos para não vê-los submetidos ao cativeiro.

Zumbi escapa com vida e, nos meses seguintes, trata de reagrupar o que resta do seu exército. Em dezembro de 1694, o pequeno contingente começa a realizar novas incursões. A notícia de que o líder palmarino está vivo e à frente de um grupo armado chega logo aos ouvidos do governador que não hesita em tomar medidas imediatas para detê-los.

Durante uma ação dos quilombolas para se apoderarem de armas e munições, Antonio Soares, homem de confiança de Zumbi é feito prisioneiro. Torturado, se recusa a falar até que seus algozes lhe propõe trocar a garantia de vida e liberdade pela delação do esconderijo do chefe guerreiro.

Na noite entre 19 e 20 de novembro de 1695, Soares guia as forças coloniais que tomam posição à espera do amanhecer. Ao clarear do dia, o delator sai do mato para uma pequena clareira e começa a chamar Zumbi que aparece pouco depois acolhendo-o sem desconfiar de nada. Em resposta, Soares o apunhala no estômago e dá o sinal aos soldados que o acompanham.

Gravemente ferido, o líder de Palmares não se rende. Ajudado pelos companheiros que estão com ele, luta até a morte contra o destacamento das tropas coloniais.

No dia seguinte, a cabeça de Zumbi é cortada, salgada e enviada para Recife onde o governador manda que a mesma seja espetada numa vara e colocada no lugar mais freqüentado da cidade, entre outras coisas, para atemorizar os negros que o consideravam imortal.

Enquanto isso, a Antonio Soares são concedidos o perdão e a liberdade. Ele vai viver longos anos e, após sua morte, Frei Loreto Couto o incorpora na galeria dos beneméritos da história pernambucana”.

- “Com um final deste, dá mesmo para dizer que a luta de Palmares adiantou muito pouco…”, comenta a boca entre a perplexidade e o desconcerto.

- “Eu não teria tanta certeza”, rebate a coruja com firmeza.

- “Mas, Nádia, pensa bem, dos mocambos não resta pedra sobre pedra… a derrota dos negros acaba de ser selada por uma vara em cima da qual está espetada a cabeça de Zumbi… o delator do líder palmarino é premiado com a liberdade e o reconhecimento público, enfim, pior do que está é impossível!”

A ave sorri e, sem titubear, aponta a asa para o secretário como quem está preste a disparar um tiro certeiro. Os breves instantes de silêncio que se estabelecem entre os dois preparam o terreno para que suas palavras sejam ouvidas e assimiladas.

- “O que as grossas lentes de seus óculos não lhe permitem ver é justamente o sentido mais profundo desta história. A morte de Zumbi, apresentada como uma vitória, é também a maior das derrotas. O poder colonial consegue a cabeça do líder palmarino, mas não o que mais queria: a sua submissão. Por isso, enquanto os funcionários da coroa vêem nesta morte o fim da rebelião escrava, o próprio Domingos Jorge Velho não partilha do generalizado otimismo. Sua desconfiança se confirma tempos depois, quando novos grupos armados começam a atacar os povoados do litoral.

Comandadas por Camoanga, as ações dos quilombolas levam o governador de Pernambuco a realizar várias expedições para destruir as forças do novo líder. Iniciadas em janeiro de 1700, as investidas das tropas oficiais só conseguem encontrá-lo e matá-lo quatro anos depois.

As poucas notícias que temos narram que um certo número de combatentes palmarinos consegue fugir para a Paraíba, onde fundam o quilombo de Cumbe, cujas forças repelem vários ataques coloniais e conseguem resistir até 1731. Há também indícios de que, entre 1696 e 1710, grupos de escravos fugidos continuam procurando refúgio na região de Palmares e dando várias dores de cabeça às autoridades.

Após enfrentar mais de 30 expedições militares ao longo de quase um século de lutas em territórios palmarinos, os escravos fugitivos continuam reafirmando com o seu sangue a incessante busca da liberdade em meio a uma realidade disposta a sufocar qualquer sinal de rebelião.

Por ironia da história, no mesmo ano em que Macaco sucumbe às forças de Domingos Jorge Velho, em Minas Gerais são descobertas as primeiras jazidas de ouro. Desde então e até o fim do século XVIII, a mineração vai concentrar as atenções da elite colonial. Os escravos desembarcados no Rio de Janeiro convergem quase totalmente para esta região e a estes se juntam os negros que os contratadores mandam comprar nas capitanias em que a atividade econômica apresenta menor rendimento.

Com a produção do açúcar em crise, Pernambuco perde um grande número de cativos. A diminuição destes no conjunto da população faz com que as fugas e as incursões se tornem raras e, em geral, bem pouco expressivas. Ao concentrar as atenções e o tráfico de escravos nas regiões auríferas, o poder desloca também os futuros cenários da resistência escrava. É sobre isso que vou falar no próximo capítulo ao tratar de…

2. Os quilombos em Minas Gerais e Mato Grosso.

[1] Trecho publicado em Décio Freitas (25), pg. 113.

[2] Os dados e a cronologia que vamos seguir a partir deste momento têm como base o estudo de Décio Freitas (25).

Enviado por Nádia, la coruja vermelha y distribuido por Leonardo Palma


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