Stédile anuncia mais invasões e critica governo
Líder do MST diz que há conjuntura favorável às ocupações, ataca morosidade na reforma agrária e cobra ‘compromisso histórico’ de Lula
ROLDÃO ARRUDA
O principal líder e pensador do Movimento dos Sem-Terra (MST), o economista João Pedro Stédile, acusou ontem o governo de morosidade na questão da reforma agrária e disse que o número de invasões de terras continuará aumentando nos próximos meses. Para ele, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva só conseguirá cumprir sua promessa de campanha de criar 8 milhões de empregos se realizar uma ampla e imediata reforma agrária e combater o atual modelo agrícola - o agrobusiness, como ele diz.
Segundo o líder dos sem-terra, esse modelo (o principal responsável pelos resultados positivos na balança comercial) gera desemprego e favorece a concentração de terras. Stédile também criticou o governo, que estaria repetindo críticas de setores da direita aos assentamentos: “O governo deveria se informar melhor.”
Estado - A direção do MST intensificou suas iniciativas neste ano, como indicam o aumento no número de invasões e de acampamentos. Por que o MST ficou tão ofensivo?
João Pedro Stédile - As mobilizações e ocupações de terra aumentaram por causa da conjugação de três fatores neste primeiro semestre. Primeiro: no seu segundo mandato, Fernando Henrique passou quatro anos reprimindo a luta pela terra. Os tucanos não entenderam que a luta não era uma vontade ideológica do MST. A luta pela terra só existe por causa de uma grande contradição em nosso País: temos, de um lado, a existência de grandes quantidades de terras improdutivas e, de outro, milhões de pessoas que querem trabalhar a terra.
Estado - Pelo visto, o governo teve resultado. O movimento enfrentou um refluxo nos dois últimos anos, como indicam as estatísticas sobre suas ações.
Stédile - Os tucanos nos reprimiram com o objetivo de tentar acabar com o MST. Podem, de fato, ter tido algum resultado, fazendo o movimento refluir, mas não resolveram o problema. Na verdade, houve um represamento da demanda real pela terra. Agora que os tucanos saíram, a panela foi destampada. Esse é o primeiro fator que explica a retomada das ocupações.
Estado - Qual seria o segundo?
Stédile - Por mais que o agrobusiness faça propaganda, por mais que se diga que a produção de grãos está aumentando e que isso salva a balança comercial, esse modelo não resolve o problema da produção de feijão, de leite, dos produtos básicos. Mas não é só: trata-se de um modelo perverso e desigual, que deixa alguns fazendeiros cada vez mais ricos, mas não cria emprego. Ao contrário, cada vez que cresce a produção e melhoram os preços dos grãos, aumenta a concentração da propriedade da terra e o desemprego.
Isso ocorre porque, com mais dinheiro, o fazendeiro compra máquinas maiores e melhores e despede mais gente. A taxa de desemprego aumentou no campo nos últimos seis meses.
Estado - E o terceiro fator?
Stédile - A população não é besta e sabe que o governo se elegeu com o compromisso de mudar o modelo que está aí e que o Lula, pessoalmente, tem um compromisso histórico com a reforma agrária. As pessoas fazem a leitura da conjuntura política e interpretam assim: ‘Agora, com o Lula, a reforma agrária sai.’ Por causa disso mais gente se dispõe a participar. Foi da conjugação desses três fatores que aconteceu a maior mobilização nesse primeiro semestre. E ela vai aumentar cada vez mais.
Estado - Pelas declarações de outros líderes do MST, a conjugação de fatores é outra: o MST estaria se aproveitando de um conjuntura favorável para intensificar suas ações e criar um clima de comoção nacional em torno da reforma agrária.
Stédile - Isso é um equívoco. Se dependesse da vontade da direção nacional do movimento, teríamos feito ocupações massivas desde o governo Sarney. O que vocês precisam entender e explicar para os leitores é que a luta pela terra não é ideológica e não depende da vontade política da direção das organizações que intermedeiam essa luta. Você pode ter vontade política de massificar, mas quem decide mesmo é a base. Não adianta criar uma paranóia, dizendo, ‘olha agora eles vão vir com tudo’, nem achar que temos superpoderes. Nós atuamos de acordo com a correlação de forças. O que mudou agora foi a conjuntura, que é mais favorável.
Estado - No Paraná, um dos Estados onde a ação do MST foi mais intensificada, houve uma nítida redução no nível da repressão policial. Isso estaria facilitando as coisas?
Stédile - No caso do Paraná eu concordo que a redução da repressão ajudou.
Mas, de maneira geral, não era a polícia que evitava o surgimento de acampamentos. O trágico daquele Estado era o fato de a polícia fazer despejos ilegais, à noite, criando comoção.
Estado - Outros líderes do MST e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) têm dito que o governo ainda não sinalizou com clareza que vai realizar uma reforma agrária massiva. Essa também é a sua leitura?
Stédile - Nossa leitura é a seguinte: o governo está moroso, demorando muito para implementar o plano nacional de reforma agrária. Mas ainda temos como aval da reforma o compromisso histórico de Lula. E é isso que vamos cobrar na audiência que teremos com eles nos próximos dias. Confiamos no seu compromisso histórico.
Estado - O senhor não estaria fazendo cobranças exageradas diante das dificuldades econômicas que o governo enfrenta?
Stédile - Não. No meio dessas dificuldades, a reforma agrária talvez seja a parte mais fácil, porque ela pode abrir frentes de emprego. Como você acha que o Lula vai conseguir cumprir a promessa de campanha de criar oito milhões de emprego? Onde ele vai conseguir isso? Na indústria? Ela também segue um modelo perverso: você dá dinheiro para se modernizar e ela desemprega. No setor serviços? Já tem gente vendendo até a mãe nos camelódromos. A grande brecha para criar emprego é a agricultura familiar e a reforma agrária. É nesse meio que se pode criar um monte de empregos de uma vez só e de forma barata. Se o governo faz um plano de reforma para atingir um milhão de famílias, cria automaticamente três milhões de emprego - porque são três adultos por família - e com um custo baixíssimo. Por outro lado, ao colocar no mercado de consumo mais três milhões de pessoas, gera uma demanda de produtos industriais capaz de alavancar o emprego nas cidades e propiciar uma melhor distribuição de renda.
Estado - O senhor está dizendo que grande a saída para o desemprego está na zona rural?
Stédile - As duas únicas saída de Lula para o desemprego e para mudar o modelo são: fortalecer a agricultura familiar e a moradia na cidade.
Estado - A eficácia da reforma tem sido colocada em dúvida até no PT.
Representantes do governo e até o presidente Lula fizeram recentemente declarações sobre o fracasso de muitos assentamentos, que hoje não passariam de favelas rurais. Como o senhor vê isso?
Stédile - Isso não é verdadeiro. Trata-se de uma tese da direita, interessada em desmoralizar o processo de distribuição de terras. Não temos favelas nos acampamentos - o que temos são camponeses pobres, mas numa situação cem vezes melhor do que antes, quando não tinham terra. Agora já tem trabalho, estão melhorando suas casinhas, têm escolas para seus filhos.
Estado - Já se disse que mais da metade dos assentados recebe cesta básica porque não conseguem sobreviver sozinhos.
Stédile - Falaram que 80% dos assentamentos são atendidos com a cesta. Quero aproveitar essa entrevista para pedir ao governo que se informe melhor antes de sair por aí dizendo coisas que não condizem com a realidade dos assentamentos. De acordo com uma portaria do Incra, durante o primeiro ano do assentamento, o assentado recebe um crédito de alimentação no valor de um salário mínimo por mês. Em algumas regiões, onde estamos mais organizados, em vez de o Incra dar o dinheirinho para cada um se organizar (e aí ele vira cigarro, vira bebida), nós realizamos as compras dos alimentos em conjunto, o que resulta até no barateamento dos produtos. Mas isso é crédito-alimentação, que deve ser pago depois e que só funciona no início do assentamento. Como nos últimos meses foram raros os assentamentos, praticamente inexistem famílias recebendo cestas básicas. Se o governo estivesse de fato distribuindo cestas para 80% dos assentados, seriam 400 mil entregas por mês. As estradas estariam cheias de caminhões do Incra fazendo a distribuição.
Estado - Outro indicador do insucesso seria o grande número de famílias que, depois de assentadas, abandonam tudo e vão embora.
Stédile - O pessoal do governo deveria ler o último trabalho que os tucanos encomendaram, no final do governo, sobre a realidade dos assentamentos, e que foi realizado em convênio com a USP. O estudo foi um tiro no pé - porque eles estavam certos que só encontrariam mazelas nos acampamentos e não foi o que aconteceu. Constatou-se que não há favelas e que ninguém desiste da terra. Outra revelação foi que, em vez das 500 mil famílias que o Fernando Henrique vivia dizendo que assentou, os pesquisadores só encontraram 328 mil.
Estado - Mas esse estudo também mostrou deficiências graves, como a resistência ao trabalho cooperativo e o baixo nível técnico.
Stédile - Claro - mostraram a realidade. É por isso que lutamos para que os governos dêem mais assistência técnica aos assentados.
Estado - O senhor já disse que o governo Lula é um governo ambíguo, resultante da costura de diferentes forças políticas. Continua pensando assim?
Stédile - O governo está dividido em relação a várias questões, como o modelo agrícola, que nem todos os ministros apóiam, e o debate sobre os transgênicos, que nós do MST não aceitamos de modo alguma. Há uma ala do governo brigando para liberar e outra que quer impedir a qualquer custo. Mas em relação à reforma agrária existe uma clara unidade no atual governo - o que é outro fator conjuntural a nosso favor.