Movimiento Pase Libre de Brasil: Para o desânimo de quem canta o fracasso, fim da tarifa zero em Hasselt nos anima

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Para o desânimo de quem canta o fracasso, fim da tarifa zero em Hasselt nos anima
23 JULHO 2013
Artigo do Movimento Tarifa Zero – Goiânia (MTZ-GO), coletivo que integra a federação nacional do Movimento Passe Livre (MPL).

Publicado originalmente em http://passapalavra.info/2013/07/81349

Com as recentes manifestações iniciadas e pautadas no combate ao aumento da tarifa em diversas cidades do país e com dezenas de milhares de pessoas na rua, o tema tarifa zero está mais popularizado e mais abertamente debatido, dando espaço para argumentos pró e contra. Agora o debate exige mais esforço, tanto dos defensores quanto dos opositores, o que significa que a preguiçosa opinião de que “isso não dá certo” é um posicionamento dispensável, pois a demanda por informações mais qualificadas aumentou. Na internet o tema era colocado em pauta, sobretudo por militantes e simpatizantes de movimentos de defesa por um transporte público de qualidade, e agora está mais propagado. No mês passado, na televisão e nos periódicos mais famosos pouco se falava do tema. Hoje, militantes e até o engenheiro Lúcio Gregori, idealizador da tarifa zero no governo municipal de Luiza Erundina em São Paulo, têm voz nos meios de comunicação ditos oficiais, ou “de massa”.

Nas entrevistas e nos debates fica claro que um projeto como este não mexe apenas com a tarifa, mas com toda uma lógica de transporte coletivo e, inclusive, na própria organização da cidade. Fala-se da gestão, controle, trabalho, qualidade dos serviços, qualidade dos veículos, de outros modais, de trânsito; fala-se de financiamento, reforma tributária, distribuição de renda; fala-se do direito de ir-e-vir, mobilidade, controle popular, direito à cidade (cultura, lazer, saúde, educação); fala-se, inclusive, da tarifa zero. Fica evidente que não se trata de “custo zero”, mas de abolição do pagamento por viagem no ato do embarque. A justificativa é a de que não são apenas os passageiros que se beneficiam do transporte coletivo, mas toda a sociedade inclusa em uma economia integrada.

A classe capitalista no geral, não só os que administram as empresas de transporte, também dependem muito desta forma de deslocamento: é pelo transporte público que trabalhadores e consumidores se locomovem. Portanto é clara a defesa de que o transporte seja, de fato, público e que toda a sociedade pague pelo transporte coletivo que, em nossa perspectiva, pode ser feita por impostos progressivos, como exemplo o IPTU (“Quem tem mais, paga mais. Quem tem menos, paga menos. Quem não tem, não paga”). De modo que os mais onerados sejam os capitalistas, pois são os que mais se beneficiam do transporte. Entretanto não há um modelo fechado de “tarifa zero”. Várias são as possibilidades e, na resposta ao “isso não dá certo”, várias experiências no Brasil e no mundo são apresentadas. Um dos exemplos mais famosos é o da cidade de Hasselt, na Bélgica.

Hasselt é capital da província flamenga de Limbourg, situada na região de Flandres, onde se encontra Bruxelas, que além de ser capital política da Bélgica, é também a capital da União Europeia. A cidade de Hasselt é famosa no assunto sobre transporte coletivo por ter instituído em 1997 a gratuidade em seus ônibus urbanos, sendo um dos mais célebres exemplos de tarifa zero na prática. Alguns artigos e notícias já foram publicados sobre essa experiência, demonstrando que a demanda (quantidade de passageiros) subiu mais de 1300% em relação ao ano anterior da iniciativa. Os impactos positivos desse fato são mencionados: melhoras no tráfego devido à redução de automóveis particulares em circulação cotidianamente, maior acesso à cidade, melhor qualidade do ar, menor necessidade de caros investimentos em infraestrutura para carros de passeio e mesmo maior acesso aos hospitais, além de se apontar um fator positivo desse sistema como forma de distribuição de renda. Nesse sistema de Hasselt, o passageiro não é onerado ao entrar no ônibus, pois quem financia são os poderes municipal e provincial, por meio de uma parte específica de impostos pagos por todos os cidadãos.

Nesse ano de 2013, em que manifestações contra aumento e favoráveis à tarifa zero estouraram com força no Brasil, tivemos a notícia de que Hasselt modificou seu tão aclamado projeto de 16 anos e voltou atrás, e passará a cobrar uma pequena tarifa de 60 cêntimos de euro a cada passageiro maior de 19 anos de idade a partir de janeiro de 2014. A página oficial do município, porém, ainda mantém as informações de seu projeto de mobilidade. Lá explicam que há linhas totalmente gratuitas e outras gratuitas apenas a residentes da cidade, e que os tempos de espera entre um ônibus e outro vão de 5 a 20 minutos, dependendo da linha, do dia e do itinerário. Há também um link para o site da empresa concessionária de ônibus, De Lijn.

O que nos chama a atenção nesse fato não é só o fim – provisório ou permanente – do projeto em Hasselt, mas a certa celebração de quem se opõe à tarifa zero no Brasil. Publicado no site da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) – portanto uma instituição pró-empresas e pró-patronal – está um artigo de Anthony Ling intitulado “Enfim, o transporte público não será (e nunca será) grátis”. O autor, que é arquiteto e urbanista, também é articulista do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil, espaço de discussão e propagação ideológica do liberalismo econômico (capitalismo de livre mercado, laissez-faire etc.) à moda austríaca. Por nosso posicionamento ideológico, obviamente, não lhos associaremos a palavra “libertários”, como se definem, mas neoliberais, como nos seria apropriado.

O destaque de seu texto já tem vez no título. Ele parece pretender fechar de vez o assunto com um ar de autoridade que quer encerrar um debate que ainda é novo: “Enfim,”. E pior ainda, afirma o óbvio que os próprios defensores da tarifa zero deixam claro: o transporte não será “grátis”. E em relação a isso, ele insiste no meio do texto ao introduzir um jargão antigo no meio liberal, “Não existe almoço grátis”, tornando-se mais difundido ainda por ser título de um livro que compila artigos publicados pelo economista Milton Friedman, expoente do neoliberalismo e do modelo de política econômica da ditadura de Pinochet no Chile. Nesse sentido, ele diz que “Os recursos sempre vão ter que sair de algum lugar, e a dificuldade de uma economia planejada é justamente saber identificar demandas e alocar estes recursos de forma eficiente”. Ora, mas isso nunca foi negado por quem defende a tarifa zero! Sim, os recursos sairão de algum lugar e sim, é preciso movimentar esses recursos de alguma maneira, por isso defendemos que haja um Fundo para o transporte público e que necessariamente haja uma reforma tributária. Começar uma crítica nesses moldes até reforçam nossos argumentos, sem contar que pode demonstrar desconhecimento ou desinformação do autor sobre o que é o projeto de tarifa zero.

No total do texto, como não seria diferente, a crítica à tarifa zero vem pelos paradigmas do neoliberalismo, sobretudo a respeito da ineficiência do Estado em se gerir uma economia capitalista. Antes de tudo é importante frisar que as críticas neoliberais, ressaltando as dos articulistas do Instituto Ludwig von Mises, em geral são do mesmo modelo das críticas dos defensores do livre mercado no contexto da Guerra Fria ou do imediato contexto pós-queda do Muro de Berlim. A esquerda que tanto criticam parece ser uma só: aquela do marxismo ortodoxo. Como costumam rotular, “estatista”, ou seja, que tem no Estado a centralização e a planificação da economia e da organização social. Juntam a essa esquerda caricata de cariz estalinista o keynesianismo, e estão prontos seus inimigos, daí anunciam sempre que o “comunismo” ou o “socialismo” sempre falhará, mesmo não se atentando que usam como padrão um “comunismo” que nunca destruiu o modo de produção capitalista. Outro tipo de esquerda parece não existir. A esquerda que se organiza de maneira autônoma, horizontal, sem hierarquias e com votos diretos e igualitários, ou a esquerda libertária que critica o Estado como forma de organização da classe capitalista (seja do livre mercado, seja do capitalismo de Estado, seja do Estado de bem-estar social), parece ser de desconhecimento de muitos críticos neoliberais.

Voltando ao artigo, formalizado nesses paradigmas neoliberais “anti-estatistas”, o autor elenca que as dificuldades políticas de um projeto tarifa zero se dão por questões técnicas. Começar o texto de maneira errada, achando que tarifa zero é apenas uma gratuidade generosa, tem efeitos nocivos em sua análise, pois tudo o que escreve é baseado em uma proposta que não é bem a tarifa zero. O sentido é sempre em querer demonstrar por previsões de futuro que a gestão estatal é sempre falha, enquanto a gestão privada é mais eficiente. Bem, se o autor estivesse tão por dentro como ele quer parecer, saberia que não há apenas um jeito rígido de se fazer tarifa zero. Com tarifa zero o transporte pode continuar comportando empresas privadas nos serviços, ou pode comportar uma empresa estatal ou até mesmo empresas autogeridas por trabalhadores. Mas sua crítica mesmo parece não se centrar na gestão ou no controle, mas nos recursos confundidos como gestão e controle. Sim, defendemos que os recursos que financiem o transporte público venham do Estado pela arrecadação de impostos, a nível federal, estadual e municipal, exigindo uma reformulação de políticas tributárias. Até aí não há como dizer com tanta certeza que tudo falhará, senão por direcionamentos ideológicos pré-moldados.

Seu tecnicismo como explicação racional e objetiva da impossibilidade da proposta ignora uma luta política que tem como alvo todo um sistema e uma lógica empresarial norteada pelo lucro. Nossa luta não se abala por críticas técnicas, até porque o próprio projeto de tarifa zero de Lúcio Gregori é embasado em técnicas, assim como as experiências existentes. O que atacamos são interesses de grupos econômicos dominantes, portanto consideramos como principal peso nessa questão a relação entre classes sociais radicalmente antagônicas no âmbito produtivo e os interesses políticos de empresários do transporte coletivo, afinal foram esses interesses, e não a inviabilidade técnica e matemática como insistem as críticas neoliberais, que barraram a experiência em São Paulo nos anos 1990 e que pretendem barrar nossa luta atual.

Se ele pretendeu no último parágrafo ridicularizar os militantes do MPL de São Paulo, não conseguiu, pelo menos perante os que estão mais bem informados. Não foram simplesmente prantos de felicidade vividos por lá, bem como em outras cidades, como Goiânia, que revogaram o aumento e alcançaram outras conquistas. São comemorações por conquistas que vieram como resultado de muita luta, que enfrentou o poderio econômico de empresas e da repressão policial, vistos como muitos como impossíveis de se afrontar. Portanto, nada parou por aí, e os contratos de concessão continuam sendo questionados e a batalha continua pela tarifa zero – que, como já explicado, não se trata somente de “passagem de graça”, mas de uma reformulação do sistema de transporte coletivo e mobilidade urbana.

A comemoração do autor pelo “fracasso” de Hasselt e o “mau-olhado” nas lutas pela tarifa zero no Brasil têm contradições até mais grosseiras do que as que ele tenta apontar nos movimentos. Se no início ele balança ao dizer que “é difícil controlar as variáveis para saber qual foi o impacto isolado da tarifa zero no aumento de passageiros”, mais adiante afirma já convicto que “em Hasselt os benefícios mencionados não foram unicamente devido à tarifa zero”. Mas as tais variáveis que matematicamente quer controlar não o impedem de, também de maneira convicta – mais convicta que anunciar uma possível falta de estímulo ao trabalho e a consequente emigração de trabalhadores – defender um modelo de transporte privado como o de Lima (no Peru), orientado por uma suposta livre concorrência que faz com que as tarifas sejam baixas e supostamente não haja protestos. Ou seja, diz por que em Hasselt não deu certo, diz por que no Brasil pode não dar, diz por que em Tallinn (na Estônia) pode não dar, mas quer dizer por que o modelo de Lima pode dar certo, segundo, claro, sua perspectiva neoliberal de livre mercado de desvencilhamento do Estado na participação mais ativa em serviços para a população. Sua preocupação é em relação à cobrança de impostos e, reiteramos, a proposta tarifa zero exige uma reformulação tributária e participação popular nas decisões.

Ling mostrou que dormiu no ponto em relação ao conhecimento sobre a proposta da tarifa zero e às lutas e aos debates que elas proporcionam sobre transporte coletivo. Um pouco mais grave, esforçou-se bastante em dar justificativas técnicas a problemas políticos e financeiros para o fracasso da tarifa zero em Hasselt, mas esqueceu de um detalhe importante e fundamental que as próprias autoridades flamengas na Bélgica explicitaram: o cancelamento do transporte sem tarifação em Hasselt, que durou 16 anos, se deu por motivos orçamentários, em que as contas públicas estavam onerosas, portanto foi necessário cortar no transporte. Uma motivação política, obviamente, de austeridade, em que são feitos cortes em gastos públicos para salvar e incentivar orçamentos corporativos; uma conta em que a população, em especial os trabalhadores, paga os prejuízos dos capitalistas. Tudo isso por uma razão que nem o mais leigo em assuntos de economia e política ignoraria: a Bélgica está inserida na Zona Euro… A Zona Euro está em crise. Se o Brasil vive um momento histórico positivo na economia, mesmo com alguns recuos recentes do governo Dilma Rousseff, talvez possamos ficar mais otimistas em relação a um novo modelo de transporte, que seja público e sem tarifa. Afinal, cadê nossa fração?

Há quem afirme que a tarifa zero só dê certo em cidades pequenas e médias, devido ao reduzido número de veículos e linhas e devido a uma facilidade de controle orçamentário. Mas se deu errado em uma cidade pequena ou média, há quem diga que o motivo é de que cidades desse tamanho e pouco populosas não gerem receitas suficientes. Bom, há ainda várias cidades pequenas e médias com tarifa zero, na integralidade das linhas ou só em alguns trechos. Tallinn, na Estônia, com quase meio milhão de habitantes, está experimentando a tarifa zero. O Brasil, entre os dez maiores PIB do mundo, e entre os que mais arrecadam impostos, parece não oferecer motivos de insuficiência orçamentária para se implementar um transporte realmente público, inclusive em suas capitais e cidades mais populosas. Se as desculpas técnicas não colam por aqui, que sigamos na luta política e popular por um novo sistema de transporte coletivo: verdadeiramente público, de qualidade, com controle popular, financiado com impostos devidamente arranjados e com tarifa zero.