O outro mundo do nosso cotidiano
Euler Conrado
Este texto pode ser uma continuação do anterior (para quem não leu, eis o link), quando falei sobre o espetaculoso mundo do F$M. A par dos belos e recheados discursos - não desprezemos os belos discursos, eles podem ajudar a mover montanhas, quando não são apenas discursos -, estamos diante de uma realidade cotidiana que nos choca. Assassinatos de sindicalistas e lideranças de sem-terra e ambientalistas no Pará, tentativas criminosas de despejo dos sem-teto de Goiânia, perseguição aos sem-voz das rádios comunitárias, só para ficarmos em alguns poucos exemplos. O outro mundo apregoado nos fóruns sociais esbarra na realidade dos governos que patrocinam estes eventos, cujos titulares se omitem covardemente de enfrentar os poderosos grupos econômicos, os banqueiros, os latifundiários, etc., enquanto patrocinam cotidianas políticas de transferência de renda dos assalariados para os banqueiros. No movimento social, quando não ocorre a cooptação das lideranças e dirigentes sindicais - como ocorreu com a CUT, ou com o Sind-UTE Minas, só para ficarmos em alguns poucos exemplos -, o governo do PT age como um governo patronal: persegue rádios comunitárias, usando o aparato da Polícia Federal, e se omite nos casos das desocupações dos sem-teto – é bom lembrar que quando tomou posse como ministro, Olívio Dutra fez questão de dizer que não atenderia como prioridade os focos de ocupação, temeroso de que estes se multiplicassem. A priorização da política de aliciamento de deputados e senadores em troca de cargos e favores, como sempre fizeram os governantes anteriores, resultou, agora, na derrota do governo que, sem o respaldo de um movimento de massas mobilizado e capaz de pressionar para que ocorram mudanças, se vê prisioneiro dos setores mais retrógrados da política brasileira. O PT está colhendo aquilo que plantou: a opção pelos Meirelles e Palloci da vida, com sua (dos grandes empresários, seus patrões) política econômica voltada para atender aos banqueiros e ao agronegócio, enquanto assalariados, desempregados, camponeses, sem-terra, sem-teto, sem-voz, etc., têm que se contentar com as promessas de um “outro mundo” possível dos discursos ocos. Eles ficam com a realidade dos lucros fáceis, enquanto nós ficamos com as promessas e as cestas básicas para continuar assistindo ao pão e circo que os romanos legaram às elites “modernas”.
A realidade é que estamos vivendo o pior dos mundos, premidos entre uma esquerda neoliberal, que não consegue enxergar um palmo além da suposta “agenda macroeconômica”, e uma direita que nem precisa mais dar golpe de Estado, já que seus interesses são colocados em prática pelos parceiros da esquerda. A mídia completamente controlada pelos setores conservadores, que vê em cada ocupação de sem-terra um risco para a ordem e para a sagrada propriedade privada de alguns poucos; um governo com seu partido dito dos trabalhadores que, antes de eleitos, estimulavam a criação das rádios comunitárias e a democratização dos meios de comunicação, mas que, mal tomaram posse se contentaram com os acordos com a Globo e filiais, passando a perseguir as rádios comunitárias e iniciativas afins. Um movimento sindical pelego, destruído e destituído de qualquer autonomia e combatividade; políticas sociais filantrópicas, que mantêm as pessoas socialmente “excluídas” na condição de miséria, massa amorfa dependente do paizão presidente em quem se deve despejar os votos para que não faltem as migalhas da sub-existência. Houvesse um cenário favorável ao golpe militar e praticamente não haveria resistência, tamanha a desarticulação das camadas sociais populares. Não há organização autônoma dos trabalhadores assalariados, não há discussão coletiva de propostas de mudanças radicais, reflexões acerca das realidades sociais existentes, que fizessem brotar a indignação e o surgimento de utopias capazes de mover as mentes e corações humanos. As discussões são patéticas, girando em torno dos conchavos de cúpula no parlamento dominado pela burguesia, discussões recheadas de frases ocas como “democracia”, convivência harmoniosa, mudanças lentas e seguras, etc. Para as favas com estas idiotices, que na prática resultam na democracia da disputa selvagem de alguns poucos pelas riquezas sociais produzidas por milhões, na apropriação do poder e dos espaços por pequenos grupos, tentando nos impor aquilo que lhes convém como sendo “o bem geral da nação”. Uma ova para vocês! Não há bem geral para 95% dos habitantes do planeta que se harmonize com os interesses destes senhores - governantes, proprietários dos bancos e monopólios, burocratas estatais, sindicais, etc.
Pena é que não tenhamos tido, até o momento, a capacidade de nos encontrar - por mais que continuemos nos esbarrando nas ruas, nos campos, nas escolas ou nas fábricas -, nos unir em torno dos nossos interesses comuns para acabar com essa realidade de inversão do real, que faz parecer que tudo vai indo bem quando na prática continuamos escravos, ferrados por minorias que há séculos nos exploram. Estamos espiritualmente derrotados, por mais que ainda permaneçam vivos os heróicos focos de resistência aqui e acolá. Talvez tenhamos que reaprender a capacidade de nos organizar coletivamente - não há saída individual -, aprender a resistir e a construir um grande movimento social que não esteja voltado para a mesmice da partilha do poder burguês, mas para a construção da autonomia, da auto-organização e do controle coletivo das fontes de vida pelas comunidades, pelos assalariados, pelos explorados que produzem as riquezas sociais do mundo. Isso é direto, não há meio termo, não há linguajar de economês, de propostas elaboradas para confundir e fazer o oposto daquilo que se propõe. É simples a coisa: queremos nos apropriar coletivamente daquilo que foi apropriado indevidamente por uma pequena fração de pessoas. Com o apoio de alguns aparatos existentes? Ótimo. Contra eles ou por cima deles, se necessário for.
Nossa prática deveria estar norteada para a associação solidária dos “de baixo”, pela libertação humana de toda forma de opressão e exploração. Contudo, para manter as posições de comando, de status, de salários, etc., etc., que o próprio sistema oferece, as pessoas abrem mão da utopia, e se convertem em medíocres reprodutores daquilo que dizem negar. Estamos cercados e esmagados pelo peso desta estrutura, mas quem sabe, em algum momento, possamos renascer. Enquanto isso, continuamos contando os mortos do nosso lado, dos sem-terra, dos sem-teto, da nossa própria morte-em-vida, enquanto sejamos incapazes de celebrar, no cotidiano, a vida de quem não se permitiu morrer sem resistir. Que vivam os que lutaram e continuam lutando por um real “outro mundo”, sem dominação de estado, de mercado, ou qualquer outra. Aos demais, estão (estamos) condenados a viver a morte em vida da resignação, da submissão aos coronéis e capitães-do-mato modernos. (Fev/2005).