Brasil: Esto es un asalto! Por Euler Conrado

22.Jun.03    Análisis y Noticias

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A frase parece vulgar, sobretudo nos dias atuais. Mas, poderíamos indagar: já não era assim, desde que o capitalismo passou a existir? Ou mesmo antes, já que a história da humanidade tem sido dominada pelo fetichismo que empana as relações reais e legitima a exploração da maioria por alguns poucos? A imagem de alguém, de arma em punho, assaltando um indivíduo parado num ponto de ônibus, levando-lhe os parcos recursos acumulados em árduas jornadas de “labor”, surge, assim, como uma espécie de materialização física da vida cotidiana de qualquer trabalhador-escravizado. No processo de reprodução do dinheiro, o trabalhador é assaltado a todo o momento pelos capitalistas, com o apoio do estado, sem que essa expropriação apareça enquanto tal. Os índices da “desigual distribuição de renda” aparecem, assim, como se a culpa fosse da maioria da população, por incompetência desta, ou por causa das políticas de governo, isoladamente. Não se diz que a atividade alienada do trabalhador é aquela que o mantém vivo com o mínimo necessário para sobreviver e garantir a acumulação da riqueza dos capitalistas e burocratas de estado.

A teoria da mais-valia colocou a nu, século e meio atrás, toda a hipocrisia embutida na falácia da burguesia acerca do “lucro justo” ou da troca “justa” entre capitalistas e proletários. Conversa pra boi dormir. O lucro é um roubo, uma expropriação: é a parte que não é paga ao trabalhador no processo de reprodução de capitais. [Claro que esta troca desigual, aparentemente igual, ocorre porque se dá no universo do fetichismo da mercadoria, que transforma as diferenças num equivalente comum, a mercadoria, e faz parecer que as relações humanas sejam relações “sociais” entre coisas].

Se ficamos horrorizados com um assalto à mão armada, por parte de indivíduos que foram empurrados para fora da disputa de mercado pelos meios legais, porque o conformismo diante do assalto que a reprodução de capitais, em si, representa? Como aceitar que toda a riqueza social produzida pela humanidade seja apropriada por uma minoria?

A propriedade privada capitalista, com seus latifúndios e grupos empresariais, constitui um roubo, individual e coletivo, por parte de gangsteres organizados em torno dos aparelhos de estado e das empresas de sociedade anônima ou limitada. Não importa aqui a procedência “nacional” que tenha dotado este assalto de uma ridícula aparência “patriótica”. O conteúdo é o mesmo, venha de onde vier: a relação capitalista, mediada pela mercadoria, tem no roubo da atividade alheia, coagulada na forma real-abstrata de dinheiro-mercadoria, um dos seus componentes inseparáveis. Não existe reprodução de capitais sem essa prática. A expressão “lucro” é uma forma eufemística de se referir a um roubo. Propriedade privada das fontes de vida, nas mãos de capitalistas ou do estado, a materialização do assalto.

A esquerda do capital prefere dourar a pílula. Diz que há capitalistas “desonestos” (ha, ha, ha) e o “lucro justo”, por parte de capitalistas “honestos” (mil vezes ha, ha, ha). Quando a crítica ao sistema capitalista se reduz a questão moral - ser mais ou menos honesto - é porque ela deixa de ser crítica ao capitalismo e se torna crítica legitimadora do capital. Reparem que até aqui eu falei de uma troca “injusta”, portanto, ligada ainda ao critério moral do que deveria ser compreendido como sendo algo “justo” numa troca: dou-lhe algo (uma quantidade de trabalho abstrato, por exemplo), e, em troca, recebo algo de mesmo valor (uma quantidade de dinheiro em forma de salário, equivalente à mesma quantidade de trabalho que dei). Teoricamente, deveria ser assim. Mas, qual o quê! Tudo o que eu recebo em forma de salário representa apenas uma pequena parcela do tempo de trabalho que eu, “livremente” (dez mil vezes ha, ha, ha), cedi. A outra parcela do meu tempo - que não é meu (não é nosso!), pois não me aproprio (não nos apropriamos) do que faço (fazemos) - é expropriada. UM ROUBO legalizado e legitimado pelas leis do mercado e garantido nas modernas constituições das muitas nacionalidades “soberanas”.

Nos jornais da burguesia anunciaram recentemente: ano passado, no Brasil, os banqueiros tiveram lucro de 200 bilhões. Só nos primeiros meses do atual governo de “esquerda”, já se pagou 50 bilhões dos serviços e juros da dívida pública. O lucro se torna, assim, palavra aceita como algo “natural”. A exploração é vista como uma relação “livre” entre duas partes.

O lucro, assim, repartido entre os grandes capitalistas, e distribuído em menor parte para a rede de manutenção das relações capitalistas, envolvendo salários de marajás, advogados e juízes, jornalistas, artistas e professores bem pagos, deputados e demais burocratas de estado nas diversas esferas institucionais, torna-se, desta forma, reconhecido como algo “normal”, “natural” até. A engrenagem de uma roda-viva que agora se autoreproduz numa dinâmica de permanente expropriação da maioria e concentração e centralização das riquezas em poucas mãos, vai sendo percebida de forma invertida pelas vítimas. Somos capazes de perceber um assalto ali na esquina. Muitos gritam: peguem o ladrão, chamem a polícia!

Ora, deveríamos nos perguntar: por que motivo a polícia deveria perseguir esses pequenos ladrões de carteira se, em essência, ela existe e foi criada exatamente para proteger a prática do assalto, defender a propriedade privada-fruto-do-assalto nas mãos de poucos, e a organização coletiva do assalto, materializada nos instrumentos estatais-empresariais?

O assaltante da esquina é um débil concorrente de mercado com os grandes capitalistas na prática do assalto. Tirando a indústria do narcotráfico, que mobiliza alguns bilhões de dólares, estes pequenos assaltantes movimentam alguns centavos diante dos trilhões de dólares que são apropriados-expropriados por algumas poucas dezenas de grandes capitalistas e burocratas servis de posse dos aparelhos estatais. Não há porque nos espantarmos com uma variante reduzida da prática do assalto. Nosso cotidiano é um permanente assalto ao nosso tempo, às riquezas sociais que nós todos, trabalhadores-escravizados, reproduzimos socialmente. Inclusive quando estamos desempregados, nos tornando presas fáceis para qualquer atividade complementar de exploração, ou como exército de reserva para intimidar os que ainda estão empregados-escravizados, ou ainda, como disputa dos nichos de mercado. A cada vez mais seletiva disputa de mercado, agravada na época da microeletrônica, nos coloca em guerra conosco mesmos a todo o momento. A burocracia sindical corporativa é reforçadora desta prática. Não é à toa que se junta a empresários “nacionais” para defender fatias do mercado contra a concorrência “internacional”.

Acabar com esse cotidiano de assalto representa estarmos dispostos não a pedir socorro ao estado - menos ainda ao mercado -, que são partes integrantes e geradoras desse assalto. Significa, ao contrário, estarmos dispostos a abolir as relações capitalistas, a lutar pela nossa auto-emancipação de qualquer forma de exploração e opressão. De estarmos dispostos a expropriar nossos expropriadores, incluindo o estado. E não há como fazer isso de forma isolada, egoísta. Só o mercado funciona, para alguns, claro, com essa visão individual e egoística de se buscar uma saída pessoal para “minha vida” particular. Quase não há vida pessoal, no capitalismo, compas: há pedaços de vida humana cindida entre os momentos em que somos expropriados e… expropriadores. Nossa libertação será coletiva, enquanto proletarizados-escravizados que estamos, ainda, inclusive para que a dimensão individual, humana, liberte-se da sua forma burguesa redutora, própria da mercadoria. Ou não será.

O assalto, o roubo, será uma constante em nossa vida, enquanto permanecerem as relações sociais mediadas pela mercadoria. Portanto, combinar a luta pela re-apropriação cotidiana daquilo que nos foi (e continua sendo) expropriado pelo estado e pelo mercado, com a construção de relações sociais autocontroladas coletiva e conscientemente por nós mesmos, proletarizados-escravizados, constitui o desafio pelo qual vale a pena viver. Enquanto houver assalariamento, enquanto houver dinheiro, mercado e estado, continuamos assaltados por gangsteres, armados ou não.

(Euler Conrado)